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sábado, 7 de abril de 2018

Uma estrela que se apaga...



... Uma estrela que se apaga ...
por José Brígido (Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Setembro 1947

Naquela tarde morna, quando ia em meio o crepúsculo, a prece do muezim (aquele que do alto dos minaretes conclama os muçulmanos à oração)  Habhallad, com o coro dos crentes, era levada pelos ventos através das calcinadas terras da Arábia... Estranho encantamento provinha de suas palavras. Lá em baixo, na praça estreita e mal calçada, os fiéis, contritos, a face lavada por sentidas lágrimas, prosternavam-se diante da mesquita e erguiam os braços ao céu, tartamudeando os salmos. 

O Sol agonizava ao longe, lentamente, como que buscando ocultar-se atrás dos inumeráveis lençóis de areia do deserto imenso. Seus últimos reflexos se perdiam no horizonte longínquo, pintalgando o firmamento de rubros e violáceos tons. Os instantes finais da prece foram comovedores, levando aos crentes ali reunidos as puras e fortes emoções daquela hora inolvidável.
  
O muezim também chorava ... Ao render graças ao Todo Poderoso Alá (*) sentira-se transfigurado, presa de místicos arroubos. Sua voz se dulcificara, como se nela repercutissem sonoridades divinas. O muezim também chorava ...
  
Dentre os fiéis, um havia, o jovem Afhir-al-Baghid, cujo rosto triste denotava a preocupação que íntimos problemas alimentavam. Erguendo-se, Afhir--al-Baghid enxugou os olhos avermelhados pelo pranto, saudou Alá e Maomé, e encaminhou-se para o minarete, onde o muezim se aprestava para recolher. Ao avistá-Io, Afhir arrojou-se ao chão, de joelhos, e, reverente, deprecou-lhe pronta ajuda na crise espiritual em que se debatia. O sacerdote ouviu em silêncio sua história. Afhir-al-Baghid esvaziou o coração dolorido, depositando suas mágoas aos pés do generoso servo do Profeta. Em seu olhar refletia-se a ansiedade da alma aflita. Que lhe diria
Habhallad ? Que remédio lhe indicaria para a inquietude que o consumia?
  
Por fim, o muezim falou, o rosto esquálido espelhando singulares fulgores:

“Filho: A bondade de Alá é maior que a sua sabedoria, mas a sua sabedoria é muitas vezes maior que os grandes desertos do leste... Toda a sua glória é cantada na Cidade Santa, a Meca dos crentes, terra eleita do Profeta... De Riad a Adém, de Adém a Hofuf, os fiéis celebram a glória eterna de Alá. Ouça, filho: Só Alá é amigo. Abre teu coração a ele, mas nunca te esqueças de que o homem nada mais é, na face da Terra, do que um pobre proscrito. Sua maldade exilou-o das regiões de bem-aventurança. Se estás aqui, carregando o pesado fardo de tuas dores, é porque - tu também - és um egresso do paraíso ... "
                                                                                                                                   
Habhallad emudeceu por instantes. Fechou os olhos e inclinou a cabeça para a frente. Assim permaneceu alguns segundos. Depois, prosseguiu, voz pausada e meiga:

- "Ouvi tuas queixas, Afhir. Se teu amigo não te compreendeu, paciência; não te revoltes contra ele. É mais digno de tua piedade do que de tua reprovação. A tolerância bem usada é um bálsamo que multiplica as forças de quem a utiliza. Cada amigo que trai outro amigo, é um ídolo que tomba, um vácuo que se abre em nossa alma. Aproveita esse vácuo: enche-o de perdão. Assim tua alma será salva... Quando vires uma noite escura, um céu sem estrelas, procura a solidão, faze tua prece, ungindo-a, porém, com o mais puro sentimento de amor de que sejas capaz. Um amigo que trai outro amigo, podes crer, é uma estrela que se apaga no céu... Mas Alá é magnânimo em toda a sua onipotência e onisciência, porque enfeita de esperanças novas a alma dos crentes. Quando uma ilusão fenece, sufocada pela ingratidão, a esperança renasce para curar as chagas causadas pelo sofrimento..."

Afhir-al-Baghid soluçava baixinho, não mais de dor, porém de comovido reconhecimento ao bem que lhe prodigalizava Habhallad. Agarrou-lhe nervosamente a destra macilenta e, osculando-a com indizível respeito, murmurou, ofegante:

- "Alá falou pela vossa boca, mestre!"

E silenciou de novo. 
  
Então, erguendo-se, o muezim despediu Afhir com estas últimas palavras de conforto:

- "Vai, filho, vai! Aprende a receber o sofrimento com serenidade e paciência. Aprende a dominá-lo pela resignação consciente. E perdoa, perdoa sempre, porque nenhum de nós sabe até onde vai a nossa culpa e a daqueles que nos magoam. Alá é sábio e nada ocorre sem estar conforme às suas leis. Vai, filho, vai! Não te esqueças, entretanto, do que te digo: aprende a receber o sofrimento com corajosa serenidade. Habitua-te a dominar a dor pelo cultivo da resignação fortalecida com prece sincera. Sofre corajosamente, perdoa humildemente, recolhido sempre no santuário do teu coração. Não te apartes do amigo infiel: ele precisa mais de ti do que supões. Lembra-te do sândalo: quando recebe um golpe, deixa escapar pela chaga aberta o mais suave perfume que Alá já derramou sobre a Terra... Ora pelo amigo que te traiu: pede a Alá que o proteja, mas que não te desampare a ti..."

Afhir-al-Baghíd tinha os olhos rasos de pranto. Compreendeu que o amigo infiel é um desgraçado. Está sem guia, perdido no meio de ideias fragmentadas que sua mente não pôde concatenar. Não deve ficar ao abandono, mas assistido e orientado. Afhir deixou o minarete, dirigindo-se vagarosamente para os lados do sul. Caminhou alguns passos, estacou e, pela vez derradeira, voltou-se para olhar a mesquita distante, semi-esbatida (de tom ou colorido pálido) na noite que já descia sobre a cidade velha. Ergueu o braço e passou a manga da túnica amarfanhada nos olhos molhados.
  
E num suspiro extenso, recordou as palavras de HahhaIlad:

- "O amigo infiel é um ídolo que tomba... um vácuo que se abre em nossa alma ... Aproveita esse vácuo: enche-o de perdão... Perdoa, perdoa sempre... Um amigo que trai outro amigo, podes crer, é uma estrela que se apaga no céu..."


E esta última frase foi-lhe bimbalhando (soando) nos ouvidos: - Uma estrela que se apaga no céu ... uma estrela que se apaga ... uma estrela que se apaga..."

Nota do Blog: Os trechos em negrito não existem no original. Foram destacados na estória acima pois resumem os ensinamentos nela contidos.

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