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terça-feira, 22 de agosto de 2017

Cinzas do meu cinzeiro...


Cinzas do meu cinzeiro...
Manoel Quintão
Reformador (FEB) Fevereiro 1942

"Eu sabia que o Bindo havia adquirido o velho hotel Biela e lá prosperava, em Ponta Grossa - a justamente denominada Princesa dos Campos.

O Bindo era a flor do exército imenso de "garçons" do meu conhecimento, por força de longas e repetidas viagens. Encontráramo-nos pela primeira vez nos idos do século das luzes, ao apagar destas, lá por 1895, no "Grande Hotel" de João do Couto, em Curitiba. Quando, pois, 20 anos mais tarde, precisamente em 1915, acorria ao Congresso EspÍrita do Paraná, como delegado da Federação EspÍrita Brasilera, outro que o Bindo não houvera de ser meu hospedeiro. A viagem por via-férrea, partindo de
S. Paulo, não oferecia perspectivas novas, por isso que a conhecia até ltapetininga, em território paulista, e até Castro do lado paranaense. O trecho intercorrente, havia de ser vencido à noite. Deixei a cidade de Tibiriça às 17 horas e quando, no dia seguinte, ao lusco-fusco da noite, atingia Ponta Grossa, chovia a cântaros. Na plataforma da Estação, certo devido ao temporal grosso, a balbúrdia era enorme. Nem um rosto conhecido! Precipitando-me de roldão para um carro de praça, gritei ao cocheiro encharcado:

- Ainda existe o hotel Biela? Sim, existia; e logo num chouto (andadura sacudida, com passos pequenos, incômoda para o cavaleiro) fustigava a parelha, para deixar-me na portada do casarão prestes reconhecido. Mas... (causa esquisita e indefinível!) ao transpor-lhe os umbrais, tive um frisson de mau pressagio. Ambiente pesado, de câmara funerária, nada obstante a iluminação farta jorrante do interior. Não tardou muito, porém, o meu enleio. A minha frente, um vulto feminino em traje de rigoroso luto, interrogava:
- É o Sr. Quintão? E a um aceno confirmativo:

- Sabia que o esperavam e já o conhecia de nome, porque o Bindo sempre me falava no senhor...

- Mas... onde está o Bindo?

- Pois o senhor não sabe? - meu marido foi há pouco tempo assassinado aqui mesmo neste salão de jantar, e, veja o senhor: - assinado pelo cunhado, meu irmão!

Dos olhos negros, profundos, porejavam duas lágrimas. Eu não sei o que lhe disse, nem mesmo se algo disse. Lembro-me, porém, de coisa assim como seja tudo por amor de Deus ...

- Mas o senhor vai jantar e vou mandar preparar-lhe o aposento, que será o que ocupei com o Bindo, até o dia fatal. Se é que os mortos vivem, como creio, meu marido há de regozijar-se com esta homenagem. É o melhor quarto da casa, está perfeitamente montado e apenas precisa de ligeira limpeza, porque nunca mais lá entrei depois da tragédia.

- Não, Exma., absolutamente não... Compreendo e agradeço a gentileza honrosa, mas prefiro um quarto daqueles da galeria lateral, com janelas altas que dão para a ladeira, onde pernoitei há vinte anos. Além do mais, não posso dormir em ambientes fechados e os quartos frontais, ao nível da rua não facultam a ventilação.

- Entretanto, na galeria só dispomos hoje de um quarto e esse não me atrevo a oferecer-lho ...

- Mas, por quê? Olhe que é questão de três ou quatro dias e "cometa" traquejado dorme até em travesseiro de pedra.

Constrangida, aquiesceu, e mal assentei à mesa para jantar, chegaram de tropel os confrades da burlada recepção. Andaram-me na pista a conjeturar impedimentos de última hora, até que descobriram que ali estava e não podia deixar de ser... eu mesmo. E foi um alegrão, dessa alegria sã de almas afeiçoadas a Jesus. Dentre elas, muitos partiram já para o reino da Verdade e da saudade; mas o Lins de Vasconcelos e o Sousa Morais ainda aqui estão para dizer o que foi esse conclave fraternista, primeiro quiçá de quantos lhe sucederam em nossa Pátria, e cuja documentação se encontra nas páginas desta revista, nºs. 3 e 4 de fevereiro de 1916. Mas, não é para falar do Congresso que sopro aqui esta larada (cinzas da lareira) e sim para fixar fenômenos psíquicos, suscetíveis de ponderação e aclaramento.

*

Assim que, ao regressar por deshoras (intempestivamente) ao hoter (?), após a sessão recepcional ao Delegado da Federação Espirita Brasileira, senti-me febril, exausto e, não obstante, insone. Doía-me a garganta, a chuva miudinha e frígida peneirava lá fora no silêncio da noite e eu ouvia cantar o galo, sem pregar olho.

O leito parecia de brasas. Alta madrugada, entrei a madornar (ficar meio dormindo e meio acordado) em sobressalto. Visões estapafúrdias, com ciclones autósitos (monstro capaz de vida extrauterina)  independente em taranteIas (dança popular italiana) bizarras. Ao deixar o leito, manhã alta, tinha os olhos injetados, ardentes; dorida a garganta, e estava completamente afônico.

Meu Deus! nem falar, nem comer; nem voz, nem noz... Era o castigo! Jejum e oração, quand même (de qualquer forma). Os confrades estavam desolados e eu mais do que eles. Nem, passes, nem gargarejos, nem poções dificilmente deglutidas, lograram melhoras.

Nesse dia, véspera de Natal, devido ao mau tempo, o Congresso reuniu-se no teatro "Renascença" e lá ouvi, com a impassibilidade de bonzo, (membro de qualquer ordem religiosa) relatadas por Lins de Vasconcelos, as teses que me cumpria desdobrar perante o Cenáculo.

- Vamos ver amanhã - diziam os confrades solícitos. Mas a segunda noite do Hotel Biela foi mais dantesca do que a primeira. Ao pandemônio onírico (dos sonhos) -visual juntou-se o auditivo, com ruídos insólitos e gemidos abafados. Eu tudo atribuía a um estado patológico: fadiga da viagem, mudança de clima, algum distúrbio alimentar. E pois que se baldavam todos os recursos terapêuticos, um só restava; contramarchar. Não assistiria ao encerramento do Congresso, não reveria a saudosa Curitiba, das alturas do "Batel", como tanto me prouvera. Estava resolvido. No dia de Natal, quando, à tarde, na gare da estação me despedia do bloco fraterno e generoso, Hugo Reis, o saudoso e cintilante jornalista do "Diário dos Campos", tomou-me de parte e disse a sério:.

              - Ouve Quintão e não te rias... Foi um desastre a tua hospedagem no "Biela"; eu quis retirar-te dali à tempo, mas fiquei receoso de provocar suscetibilidades. Aquilo é uma casa malsinada. O Bindo, o teu amigo, foi o último número da tragédia que ali se vem desenrolando. " Dize: que quarto ocupaste?

            - Número tal.

- Justamente o fatídico, onde já se verificaram dois ou três suicídios. Pensa no caso e dá-me notícias.

A sineta tilintava em sinal de partida e dentro em pouco, comovido, da plataforma do último vagão, eu via desaparecerem na curva da linha os lenços adejantes, quais asas brancas em caprichosos remígios (movimento das asas).

E o grande caso é que, apesar da noite úmida e dos solavancos e agruras da viagem, adormeci corno um justo, para só despertar muito aquém de Sorocaba. E ao tomar pé na Paulicéia, sentia-me são como um pero e voraz como um Vitélio (foi imperador romano).

*

Mais tarde, traduzindo Souvenirs de Ia folie, de Antoinette Bourdin, lá encontrei registrada a teoria dos chichés astrais (pintinhos astrais?) e Flammarion, em La mort et son mystère, consigna o episódio impressionante, que facultou a descoberta de um crime, graças a um sonho premonitório. Mas hoje, como ao tempo em que isso se deu, há 26 anos, eu não discuto teorias e só registro fatos quando respigo no meu borralho. (lugar aquecido e confortável.)

2 comentários:

  1. Ola, me chamo Kailani. Bindo foi meu tataravô. Avô de meu avô Vinicius Bindo. Fiquei muito curiosa sobre esse texto. Estou pesquisando sobre a história do Bindo e queria conversar com você. Poderíamos conversar? Meu e-mail: kailani.contato@gmail.com

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  2. Oi Kailani, O meu é gckauffman@gmail.com. Escreva-me quando quiser. Após, passo meu celular via email. Sou o Gustavo, coordenador deste blog. Estou em viagem no interior de SP e o meu laptop apresentou problemas o que limita meu tempo disponível. Estou usando um laptop emprestado. O técnico daqui de Jundiaí (onde estou agora) pediu 15 dias para consertá-lo... Nada feito! Vou levá-lo para o Rio de Janeiro (onde moro) para conserto. Como vc deve ter reparado estou com as postagens suspensas já há alguns dias. FCD.

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