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segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Allan Kardec e o mistério de uma fidelidade secular



Allan Kardec e o mistério de uma fidelidade secular  
Hermínio C. Miranda
Reformador (FEB) Abril 1973

            Junto ao dólmen que marca o túmulo de Allan Kardec, no cemitério Père Lachaise, em Paris, está a sepultura "tão austera, assustadora e deserta" de Gérard de Nerval. "Que há de comum entre esses dois mortos - pergunta Jean Vartier -, entre a recordação duma fria divagação e a messe de uma loucura ardente? Eu daria todos os livros de Allan Kardec por um soneto do amoroso de "Sylvia". Mesmo no além-túmulo, a injustiça triunfa. Os cortesãos menos talentosos do maravilhoso são os mais adulados pela multidão e as rosas não vão para aqueles que as amaram."

            Com essa frustração, encerra-se o livro "Allan Kardec - La Naissance du Spiritisme" ("Allan Kardec - O Nascimento do Espiritismo"), do jornalista Jean Vartier, edição da Livraria Hachette, 1971, 25 francos.

            O autor se declara, pois, inconformado ante a tremenda "injustiça" da posteridade, cobrindo diariamente de flores o túmulo de um "desaparecido", enquanto o poeta jaz esquecido e abandonado. Deixemos aqui um pensamento de fraterna afeição para Gérard de Nerval e os votos de que a sua "loucura ardente" se tenha convertido, no mundo espiritual, na doce tranquilidade da paz interior.

            "Durante as horas em que o Père Lachaise permanece aberto - prossegue Vartier -, jamais está deserta a vizinhança desse túmulo”.  Verdadeiramente incompreensível o fenômeno, quando se pensa que mais de um século já decorreu desde que foram ali depositados os "restos mortais" do codificador do Espiritismo. Mais incompreensível ainda que, após um século, haja quem se dedique a um trabalho enorme de pesquisa para escrever um denso volume de mais de 300 páginas dedicado à tentativa inglória de destruir o que o autor julga um mito.

            Na esperança de compreender o mistério de uma secular fidelidade à lembrança de Kardec, Vartier passou algumas horas no Père Lachaise. "Vi desfilarem alguns Jovens diante do dólmen. Não eram bretões, mas do tipo mediterrâneo inequívoco, operários italianos ou espanhóis. Gente sem raízes, que tudo deixou para trás: a miséria, as lembranças, o túmulo dos pais." Na sua opinião, portanto, uns pobres diabos que, graças a Deus, nem são franceses.

            Isto é apenas o eco de outra constatação (permitam o galicismo, já que o livro é francês) não menos surpreendente e não menos inexplicável, para o autor. A páginas 164, ele escreve isto: "Poderia Allan Kardec ter previsto que "O Livro dos Espíritos" (sempre em circulação nos países francófonos) seria, no século XX, mais vendido no Brasil do que em qualquer outro lugar? Bryan Wilson, no seu estudo sobre as Seitas Religiosas, nos informa que as teorias de Kardec são propagadas naquele país (1) por Chico Xavier e que centenas de milhares de espíritas o adotaram. (2) Não é preciso, sem dúvida, procurar razões outras senão as de ordem sociológica, para esse êxito de um velho livro no além-mar." (O grifo é meu.)

                (1) Na verdade, a expressão do original é "la bas", lá embaixo. 
                (2) Não são milhares; são milhões...

            Veja, então, o leitor, pela amostra, a posição do Sr. Vartier: o Brasil é um país atrasado, "la bas", onde um velho livro inútil ainda encontra quem o leia. As razões do êxito contínuo da obra de Kardec são de ordem sociológica, isto é, por causa mesmo do atraso intelectual de um povo subdesenvolvido. Não são os desenraizados e miseráveis que lhe visitam o túmulo? E ainda mete o Chico nessa história, por informação de segunda mão de um certo Bryan Wilson, pesquisador de "seitas religiosas".

            "Isto prova - diz ainda à mesma página 164 - que uma obra na qual inexiste qualquer traço de gênio pode, às vezes, ser testemunho de uma radioatividade (palavra sua) vivaz e alcançar vitórias memoráveis contra o esquecimento."

            Essa é uma das tônicas do livro: a atitude superior de condescendência, diante de assuntos desprezíveis como são a vida de Kardec e o Espiritismo. Há outras dominantes menores nessa polifonia de paixões desatadas sobre a comunidade espírita mundial que não busca senão entender melhor a natureza humana e seus vínculos com o poder supremo que, evidentemente, criou e mantém o Universo. Há de tudo no livro: a ironia, a galhofa, a meia-verdade, a insinuação, o trabalho sutil - e às vezes não tão sutil - de levar tudo ao ridículo, tanto quanto a interpretação maliciosa de posições e atitudes assumidas por Kardec. Enfim, tudo serve, desde que resulte em instrumento de demolição. Há momentos, mesmo, de inverdade total, que somente pode prevalecer para aquele que não conhece o assunto. Aqui vai um exemplo. A "Revue Spirite", de novembro de 1928, denuncia como impostor "um indivíduo que se faz chamar Doutor Kardec e se diz neto do ilustre espírita Allan Kardec". Como se descobriu depois, o homem era, na realidade, um certo Louis-Henri-Ferdinand Dulier, nascido em Schaerbek, em 1873, segundo informa Vartier. Agora, vejam a crueldade: "Ele se dizia doutor - diz o autor - sem possuir o diploma correspondente (o que constituía, afinal de contas, um ponto comum entre ele e Allan Kardec). "A expressão entre parênteses é, evidentemente, de Vartier, mas onde e quando Allan Kardec se declarou doutor? Diz ainda o autor, alhures (pág. 27), que Kardec se apoderou do título de Doutor em Medicina, "que figura ainda na edição de 1954 de "O Livro dos Espíritos". Nossa pesquisa na riquíssima biblioteca da FEB não revelou nenhum livro de Kardec que contivesse o suposto título de Doutor. Não sei que edição é essa em que se baseou Vartier para dizer o que diz, ainda mais acrescentando maliciosamente que figura ainda o título, dando a impressão de que todas as anteriores o traziam, o que, definitivamente, não é verdade.

* * *

            O livro de Jean Vartier começa mal ao chamar Allan Kardec de "papa do Espiritismo", logo na segunda frase do prefácio e prossegue mal informado, ao declarar que “tudo quanto ele escreveu de 1855 em diante “foi ditado pelos Espíritos", o que também não é verdade. Como sabem os espíritas bem informados, nem mesmo "O Livro dos Espíritos" foi totalmente ditado. Não só a introdução e os comentários, como toda a sua estrutura e a formulação das questões, é trabalho pessoal de Kardec. Esse, aliás, foi o plano da obra, dado que as perguntas deveriam ser suscitadas do ponto de vista humano, para que não fosse a doutrina mais uma revelação unilateral, ditada apenas de cima para baixo mas sim a resultante de uma estreita colaboração entre homens e Espíritos.

            Também não é verdade, como afirma Vartier, ainda no prefácio, que Kardec "acreditava haver encontrado sobretudo a demonstração científica da existência de Deus e da imortalidade do espírito - sua palavra aliás é perenidade do espírito -, demonstração capaz de fazer recuar o materialismo". Isto é o que chamo de meia-verdade. É certo que Kardec deixou demonstrada a "perenidade" do Espírito. Quanto à "demonstração científica" da existência de Deus, não me parece exata a expressão. O que vemos em "O Livro dos Espíritos" é uma discussão de caráter filosófico sobre Deus, Sua natureza e Seus atributos. Deus está presente em cada linha da obra do Codificador, sendo mesmo sobre Ele as primeiras questões suscitadas; não obstante, mesmo aspectos de muito menor relevância do que o problema de Deus os Espíritos informam que ainda estão fora do nosso alcance e apreensão intelectual.

* * *

            O livro de Vartier se apoia bastante, a julgar pelas inúmeras e frequentes citações, na obra de Madame Claude Varèze que "teve o mérito... de colocar sob justa claridade a personalidade de Allan Kardec", na coleção "Os Grandes Iluminados". (Mais uma vez aviso ao leitor que os grifas são meus.) O que ele quer dizer é que a Sra. Varèze também se empenhou na tarefa de reduzir Kardec a uma figura indigna de atenção dos homens.

            Quanto ao êxito espetacular da Doutrina Espírita, em geral, e da obra escrita de Kardec, em particular, a explicação para Vartier é tão simples quanto grosseira: Kardec foi "o pioneiro, na França, dos métodos de propaganda à americana e, ao mesmo tempo em que praticava a religião dos Espíritos, adotava o culto da eficiência. Um reformador superado quanto à doutrina, mas prodigiosamente atual quanto à escolha dos meios de fazê-la prosperar".

            A esse ridículo comercialismo publicitário fica reduzido o espírito metódico e objetivo de Kardec, segundo Vartier. Exatamente os traços mais característicos da personalidade de Kardec, que nos garantiram uma doutrina purificada, isenta de fantasias e cautelosa, surgem das páginas de Jean Vartier transformados em defeitos humanos, que vão da candura à esperteza, da mediocridade ao cinismo, da ausência de cuidados científicos ao oportunismo mais vulgar e imediatista. Vale tudo!

* * *

            A primeira parte do livro, até à página 56, o autor dá o título de "Cinquante ans de vie cachée" ("Cinquenta anos de vida oculta"): o nascimento em Lyon, os anos formadores em Yverdon, sob a direção de Pestalozzi, e o mais que sabemos. A propósito, o grande pedagogo suíço também leva de raspão alguns safanões e irreverências gratuitas, pois não passava de um mestre-escola, por procuração de Jean-Jacques Rousseau. Quem não pode ver os grandes na sua estatura normal, trata de reduzi-los a anões.

            Nada escapa à fúria demolidora de Vartier. O casamento de Kardec com Amélie? Simples interesse. "Hippolyte tomou alegremente sua decisão. Tinha ele boas razões para isso: filha única de um proprietário, antigo tabelião, Amélie herdaria, mais cedo ou mais tarde, uma bela fortuna; versada em pedagogia, ela era professora, titular dum diploma de primeira classe. Acrescente-se a isso que se amavam."

            O amor vem no fim, incidentalmente, como fator de ordem secundária. O que teria predominado na decisão foi o interesse!

            De longe em longe, uma afirmativa mais amena, como esta: "A vontade de superar suas dificuldades financeiras não impedirá jamais o casal Rivail de dedicar uma parte de suas vidas ao ensino gratuito, considerado como um apostolado" (pág. 32). Ou esta, que é preciso conservar em mente: " ... a reconstituição de sua fortuna se deve sobretudo à venda maciça de suas obras pedagógicas, que haviam sido adotadas pela Universidade" (pág. 33).

            O que predomina, porém, é a exploração maliciosa de qualquer episódio que, a juízo do autor, pareça equívoco. O fato de Kardec ter trabalhado como guarda-livros de um teatro, segundo depoimento de Leymarie, levou os caluniadores a dizerem que ele foi diretor de uma "casa de mulheres". Vartier menciona o desmentido de Henri Sausse e a palavra de Leymarie, confirmando a ocupação de Kardec como guarda-livros, num período difícil de sua vida, mas prossegue declarando que aquele "insólito intermezzo" teve sua importância. "Não foi isso que permitiu ao futuro papa do Espiritismo aproximar-se desses leais fazedores de ilusões, que são os prestidigitadores, e medir, dessa forma, as aptidões do homem a enganar o seu semelhante com as aparências?"

            Vê-se que nada fica afirmado, taxativamente, nem desmentido, mas permaneceu no ar o veneno de uma ridícula insinuação, segundo a qual, ao tempo em que prestava serviços de guarda-livros a um teatro, para se manter, Kardec talvez tenha aprendido a enganar o próximo...

            Para Vartier, Kardec é herdeiro do magnetismo animal de Mesmer, o que evidência bem seu desconhecimento do assunto, a despeito de tantas pesquisas. Eis como manifesta sua opinião: "Há entre Mesmer e Kardec toda a diferença que existe entre uma "vedete" internacional de cinema e um oficial do Exército da Salvação, que teria sido o legatário universal da vedete" (pág. 42).

            Frequentemente, os ataques a Kardec buscam apoio em pronunciamentos do médium escocês Daniel Dunglas Home. No livro "Luzes e Sombras do Espiritualismo", de Home, Vartier vai buscar o seguinte: "Sabe-se que Allan Kardec não foi médium. Ele nada fazia senão magnetizar ou "psicologizar" pessoas mais impressionáveis do que ele."

            Vartier promove esse texto, exíguo e mal informado, a uma "revelação capital da qual Home tira imediatamente a consequência: ele nos deixa entender (grifo meu) que os médiuns, através dos quais Allan Kardec pretendia interrogar os Espíritos, não eram mais, em suas mãos, e sob o império de sua vontade, do que sonâmbulos prontos a traduzirem seu próprio pensamento e não a captarem mensagens do além" (pág. 55).

            A despeito da citação, classificada como "revelação capital", e da qual Vartier inferiu ideias que Home não expressou, nem por isso Vartier tem em boa conta o dito Home, que ele considera cruamente um charlatão da pior espécie. "Nem sempre Kardec teve a circunspecção que o levou a se livrar de Home", diz Vartier a páginas 237, atirando farpas em ambos, numa só frase.

            Segundo Vartier, Kardec foi um dos Espíritos mais disputados logo após a sua desencarnação. "A Dunglas Home, seu inimigo íntimo (grifo meu), transmitiu, em primeiro lugar, a retratação solene de seus erros. Renunciou a sustentar o dogma da reencarnação. Na condição de Espírito, punha seu perispírito em forma (sic)... numa retratação honrosa aos pés daquele que o havia contraditado."

            Mas não é Vartier que vai assim facilmente aceitar a "confissão" de Kardec-Espírito, através de tal médium: "O procedimento foi um pouco fácil demais, "monsieur" Home", diz ele (pág. 289).

            Dessa maneira, de Daniel Dunglas Home Vartier somente aproveita a notável revelação de que Kardec é que impunha aos Espíritos as respostas que deseja ouvir.     

            Acha mesmo que o Espiritismo já existia desde 1848, por ocasião da fenomenologia mediúnica na casa da família Fox, em Hydesville, nos Estados Unidos. E, no entanto, a Sra. Fox, mãe das meninas, que primeiro conversou com os Espíritos, "não teve seu busto esculpido por nenhum artista". É uma pena que só Kardec tenha merecido essa honra... Acontece, porém, que as meninas também não escapam à sanha demolidora do Sr. Vartier. Depois de ganharem muito dinheiro, diz ele, afogaram-se em álcool e desmentiram tudo. Quem estudou o episódio de Hydesville sabe que isso é outra meia-verdade e que, portanto, contém outro tanto de inverdade. As moças eram realmente dotadas de mediunidade, e se deram mal com a desenfreada comercialização das suas faculdades. Houve, pois, fenômenos autênticos no início e fenômenos fraudados mais tarde. Perdidas e confusas, sem base alguma doutrinária, elas se retrataram do desmentido, mas, a essa altura, quem estava interessado na retratação, se havia uma confissão de fraude?

            Por outro lado, não foi o Espiritismo que nasceu em Hydesville, em 1848, e sim a fenomenologia mediúnica que, aliás, nem mesmo nascia, e sim renascia, pois a comunicação entre seres encarnados e desencarnados sempre existiu. O Espiritismo, como doutrina ordenada, clara, racional e coerentemente exposta, começa com a publicação de "O Livro dos Espíritos", de Allan Kardec, em abril de 1857.

            Aliás, a preocupação do Sr. Vartier com a família Fox deve ser meramente histórica, porque ele "descobriu", para grande alívio seu, que nada havia de espírito em Hydesville. Isso porque um tal Doutor Austin Flint, professor de Clínica Médica na Universidade de Búfalo, que havia examinado as jovens Fox, "descobrira que, pela contração rápida de certos músculos, é possível emitir, sem nenhum movimento aparente, estalidos semelhantes a pequenas marteladas surdas. Para ele, todo o mistério das Fox se concentrava nos joelhos." (pág. 62).

            Ainda bem! Que alívio! Já imaginaram que problema se essa história de Espiritismo fosse mesmo verdadeira?

            O que existe no episódio de Hydesville é uma lição secular e muito repetida: mediunidade não é meio de vida. E por isso o mediunismo desabrochado na América praticamente nada produziu em matéria doutrinária, nem o perfil de uma filosofia espiritualista digna de exame. O mesmo talvez teria acontecido na França se lá não estivesse, vigilante e armado de bom senso, o professor Hippolyte  Rivail. Segundo informa o próprio Vartier, "dez mil pessoas comerciavam profissionalmente com o além, a serviço de uma clientela que girava aí pelo meio milhão. Dois anos mais tarde, eram já três milhões, de Boston a Manchester e de Long Island a Cincinnati".

            Mas, isso é Espiritismo? Houve, no entanto, gente de indiscutível probidade e capacidade intelectual que viu nos fenômenos bem mais do que um exercício de "buena dicha", ou um sistema de ligação interurbana (paga) para o Além. Robert Hare era professor da Universidade da Pennsylvania; Mapes, um grande químico; Edmonds, juiz de direito. Não foram suficientes, porém, para conter a onda de industrialização da mediunidade, que tudo avassalou. Não é sem razão que a Doutrina Espírita, codificada por Kardec, condena enfaticamente a profissionalização da faculdade mediúnica. E quantos médiuns não têm verificado, reiteradamente, para sua desgraça, que as coisas se passam exatamente assim: a mercantilização da mediunidade sempre deu problema.

* * *

            A negação de Kardec por Jean Vartier começa pelo próprio título da obra principal da Doutrina. Pois bem. Há um livro "Dos Espíritos e suas Manifestações Fluídicas", escrito em 1854 pelo Marquês de Mirville. Para maior suspense, Vartier coloca os três pontinhos de reticência entre a palavra "Espíritos" e a expressão "suas Manifestações Fluídicas". Sem embargo da declarada e írredutível hostilidade de Mirville pelas ideias de Kardec, Vartier não perde a oportunidade para deixar mais um dos seus venenos na mente do leitor desprevenido: "O antigo pedagogo Rivail, que alguns fizeram passar como homem das apropriações abusivas, não se teria apoderado até do título do seu famoso livro?"

            Veja bem a malícia... Não é Vartier que acusa Kardec de apropriador de ideias alheias - alguém disse isso, mas quem sabe ele não plagiou também o título da obra de Mirville? Como e por que, meu Deus? E ainda mais, para que confundir o seu livro com uma obra que se lhe opunha radicalmente?

            Muitas vezes encontramos em Vartier o riso tolo que não chega nem a ser ironia. De uma mesa que se quebrou sob uma pesada carga de pedras, numa sessão experimental de levitação promovida por um Sr. Barbarin, Vartier diz que o móvel não escapou a martírio, já que os pregadores espíritas não o tiveram. Qual a graça?

* * *

            O inesperado sucesso da obra de Kardec é uma fonte de constante especulação e interesse para o seu mais recente biógrafo, o Sr. Jean Vartier. "O Livro dos Espíritos", informa ele, admirado, foi reeditado quinze vezes durante a existência de Kardec e cinquenta vezes em cinquenta anos. Isso dá uma edição por ano, durante meio século! É um prodígio! E ele nem menciona as edições em português que, durante mais de século, não mostraram sinais de diminuir; pelo contrário. Que o diga o confrade Thiesen, que dirige o Departamento Editorial da FEB. E tem mais: não é só "O Livro dos Espíritos" - são todas as cinco obras básicas da Codificação, que já andam pelos milhões...

            Mas a atenção de Vartier é solicitada para os aspectos materiais do êxito e não para os benefícios espirituais daí decorrentes. Fica ele a imaginar a fortuna que isso representa em direitos autorais. E suspira: "Ah, se os precursores do Espiritismo tivessem sabido disso!"

            Assim, não é de admirar-se que Vartier não consiga distinguir o genuíno do falso, no assunto que examina. Coloca no mesmo pé de igualdade "O Livro dos Espíritos" é uma obra "modestamente" intitulada "Salvemos o Gênero Humano", ditada em 1853 por um Espírito que se deu o nome de "Ame de la Terre" ("Alma da Terra"), a um certo Senhor Victor Hennequin. Segundo Vartier, que cita Louis Figuier, a Alma da Terra havia assegurado ao pobre Hennequin que os originais do livro seriam adquiridos por 100.000 francos-ouro pelo editor Delahaye. Se Vartier tivesse um pouco mais de experiência do assunto sobre o qual escreve, saberia que Hennequin foi apenas a vítima inerme de uma obsessão. Por que razão, então, Kardec "corria o risco considerável de publicar "O Livro dos Espíritos", à vista do trágico precedente" da fantasia da Alma da Terra? Não há como comparar as duas obras. Uma é produto da aceitação cega de uma "revelação" espetacular, à qual o próprio Espírito colocou um preço em dinheiro vivo, para melhor subjugar seu pobre médium; a outra - "O Livro dos Espíritos" - é obra realizada lentamente, cercada de extraordinários cuidados,  meditada, expurgada de fantasias, testada através de vários médiuns, exposta por vários Espíritos, feita, enfim, com extrema seriedade.

            Acontece que, diante desse êxito espetacular e que resiste tenazmente à passagem dos decênios, é preciso dizer alguma coisa. Ei-la: "Terminada a obra, era de seu temperamento e de seus hábitos explorá-la comercialmente, como havia explorado tantas outras sob o nome de Rivail" (pág.128).

            Meu Deus! Nenhuma exploração comercial jamais existiu nem nas obras publicadas sob o nome de Rivail nem nas que saíram com o pseudônimo. O que houve, pura e simplesmente, é que esses livros encontraram inequívoca receptividade de parte do públlco, ou seja, os livros de Rivail, como os de Kardec, vendiam-se aos milhares, e os que cuidam da Doutrina vendem-se até hoje. Que exploração existe aí? Se o livro do Sr. Vartier alcançar sucesso de livraria, não compete a ninguém dizer que ele está explorando comercialmente o seu trabalho.

* * *

            Nem tudo, porém, no livro de Vartier está perdido. O capítulo VIII, por exemplo, transcreve o resumo da Doutrina Espírita, do próprio Kardec, no seu opúsculo intitulado "Le Spiritisme à sa plus simple expression". Mesmo aqui, no entanto, Vartier não perde oportunidade para uma observação mordaz, dizendo que não poderia deixar de "infligir" o texto de Kardec ...

            Depois dessa pausa, prossegue a tarefa ingrata de atacar o homem e a obra. O título do capítulo IX revela, mais uma vez, o seu desconhecimento de aspectos importantes do Espiritismo: "Os Espíritos nada inventaram." E quem disse que eles sequer tentaram inventar? Ninguém inventa o que está escrito nas leis de Deus - apenas descobre. Inventadas são, no entanto, muitas obras de pura fantasia, como a do pobre "Monsieur" Hennequin, que acreditou piamente nas teorias da "Alma da Terra". Felizmente, para todos nós, os Espíritos que transmitiram a Doutrina a Kardec não eram daqueles que inventam, nem Kardec era dos que aceitam as coisas sem exame. Ensinaram a lei da reencarnação, a sobrevivência do Espírito, a lei de causa e efeito, discutiram discretamente a questão da existência de Deus e demonstraram a comunicabilidade entre os Espíritos (desencarnados) e os homens. Não se arriscaram a nenhuma especulação para a qual a época e os homens ainda não estivessem preparados. Não há na linguagem que empregam subterfúgios, nem obscuridades. Além disso, a obra não se destina apenas aos eruditos e àqueles que disponham de sólida formação filosófica - é livro para todos lerem e entenderem. O próprio Jean Vartier, com toda a sua exuberante má vontade, não se furta a declarar que não nega a "O Livro dos Espíritos" "o mérito de uma relativa clareza, de unidade no tom e de lógica no encadeamento. Sente-se que foi escrito por um vulgarizador profissional" (pág. 143). Acha, no entanto, que, ao abordar os domínios científicos, o livro "se compromete francamente, correndo o risco de se ridicularizar se (grifo meu) as descobertas posteriores vierem a fazer ruir a sua tese" (pág. 144).

            "O mais belo exemplo" (palavras suas) desse compromisso é a questão da habitabilidade dos corpos celestes. A pergunta "São habitados todos os globos que se movem no espaço?" os Espíritos respondem: "Sim, e o homem terreno está longe de ser, como supõe, o primeiro em inteligência, em bondade e em perfeição. Entretanto, há homens que se têm por espíritos muito fortes e que imaginam pertencer a este pequenino globo o privilégio de conter seres racionais."

            Vartier conclui vitorioso: "Visitamos um desses globos depois disso. Ele não era habitado." Calma. Primeiro, que ainda se sabe pouco a respeito da Lua. Segundo, que não parece que os Espíritos tenham levado em conta a inclusão de miríades de satélites de pequeno porte, ainda mais de um planeta como Terra, de reduzidas proporções, quando se referiram aos "globos que se movem no espaço". Em terceiro lugar, os corpos celestes podem ser habitados por seres incorpóreos, ou seja, desprovidos de corpo físico, tal como o conhecemos. E, finalmente, uma pergunta: é só isso que Vartier encontrou em toda a obra de Kardec, quanto aos aspectos científicos, após mais de um século em que o livro enfrentou, firme, a pesquisa mais avançada? É esse o seu mais belo exemplo? Está fraco, porque onde estão as obras científicas de cem anos atrás? De cem, não digo tanto, mas de 20?

            A objeção levantada por ele, quanto ao problema da "geração espontânea", é também inconsistente. É a questão 46 de "O Livro dos Espíritos": "Ainda há seres que nasçam espontaneamente?" A resposta: "Sim, mas o gérmen primitivo já existia em estado latente." Como lhe convém, Vartier corta aí a citação, mas os Espíritos disseram mais: "Sois todos os dias testemunhas desse fenômeno. Os tecidos do corpo humano e do dos animais não encerram os germens de uma multidão de vermes que só esperam, para desabrochar, a fermentação pútrida que lhes é necessária à existência? É um mundo minúsculo que dormita e se cria."

            Portanto, nada de geração espontânea, como a entendiam os sábios da época de Kardec, que achavam que seres vivos podiam sair do nada, o que os Espíritos negam enfaticamente, pois o poder de criação é exclusivamente divino.

            Vartier volta a discorrer sobre a falta de originalidade das teorias transmitidas pelos Espíritos, o que revela, na melhor hipótese, seu desconhecimento do problema, porque os Espíritos sempre advertiram que o trabalho de pesquisa científica ou filosófica cabe ao homem. Se tudo nos viesse pronto, meditado, resolvido, final, que mérito nos restaria, e como aprenderíamos a resolver as nossas dificuldades?

            Acha o autor, por isso, que os conhecimentos revelados não ultrapassam o nível intelectual e cultural de Kardec. "Os frequentadores dos tribunais - diz ele - sabem muito bem que a maneira de interrogar determina, com frequência, as respostas (por sugestão ou provocação)" (pág. 146). Quer dizer que, no seu entender, o próprio Kardec sugere o que deseja obter como resposta, tese, aliás, de Daniel D. Home. É o fim! Será que o Sr. Vartier leu mesmo "O Livro dos Espíritos"? Será que ele tomou conhecimento daquelas respostas inúmeras em que os Espíritos, bordejando, às vezes, pela rudeza, contestam com veemência pontos de vista de Kardec?

* * *

            Às vezes o Sr. Vartier vai mais longe do que seria de admitir-se. Veja-se, por exemplo, o caso da reencarnação que, evidentemente, ele não aceita mesmo. Incapaz de admitir a intervenção dos Espíritos nos ensinamentos contidos na obra principal da codificação, e negando a Kardec qualquer valor intelectual, formula uma pergunta que ele próprio classifica de brutal: " ...que me perdoem de pôr de lado os Espíritos e colocar brutalmente a questão: "Quem introduziu a reencarnação no "Livro" (dos Espíritos) e de quem ele (Kardec) a tomou?"

            Não creio que o Sr. Vartier ignore que a doutrina da reencarnação é antiquíssima, especialmente entre os povos orientais e, neste ponto, como em tantos outros, os Espíritos se imitaram a reafirmar, com a sua chancela, a doutrina das vidas sucessivas como lei universal, essencial ao processo evolutivo do ser.

            É ridículo, além disso, afirmar que Kardec "tinha um fraco pela reencarnação" e que somente se decidiu a "entrar no Espiritismo militante (!) depois de convencido, por Zéfiro, de que havia vivido outra vida terrestre".

            Essa opinião é também a de Claude Varèze, cuja obra detratora sobre Kardec tanto serviu aos propósitos do Sr. Vartier. Não obstante, a própria Sra. Vareze foi descobrir num discurso de Kardec, ou melhor, do professor Rivail, em 1834 - portanto, cerca de 20 anos antes de se engajar na pesquisa espírita - a seguinte frase: "A fonte das qualidades se encontra nas impressões que a criança recebe ao nascer, talvez antes."

            Vartier acha, porém, que Kardec apenas antecipava, nesse ponto, a doutrina freudiana do conhecimento intrauterino, o que já não seria de pouca monta.

            Também a ideia do perispírito deseja ele provar que é anterior a Kardec, e realmente o é como sabemos. E a razão de tudo isso é sempre a mesma - é que "O Livro dos Espíritos" não é obra de fantasia; ele contém o resumo da sabedoria milenar dos povos, as grandes ideias e descobertas que os homens fizeram ao longo de muitos milênios de especulação e depois ordenaram no mundo espiritual, para nos ensinarem apenas a essência.

* * *

            O trabalho do Sr. Jean Vartier consiste, pois, em mostrar o Espiritismo, em geral, e Allan Kardec, em particular, através das suas lentes deformadoras. Tudo o que elas filtram tem aparência de interesse material, cheira a esperteza ou é fantasioso, quimérico, medíocre.

            Há exemplos dos mais gratuitos e cruéis desvirtuamentos.

            Uma ocasião Kardec foi visitado por dois repórteres russos de um jornal de S. Petersburgo. Como se mostraram interessados apenas em se instruírem, foram generosamente acolhidos por Kardec e até convidados, excepcionalmente, para uma sessão. E aqui começam as farpas. Os espíritas praticantes sabem que as sessões devem ser realizadas reservadamente, sempre que possível com as mesmas pessoas, às mesmas horas, no mesmo local.

            Ignorando, deliberadamente ou não, os cuidados que cercam o trabalho mediúnico, o Sr. Vartier informa que as sessões eram reservadas aos "cotistas da Sociedade de Paris", isto é aos contribuintes, mesmo sabendo da declarada e repetida condenação de Kardec à remuneração de tarefas mediúnicas.

            Mas, os dois repórteres presenciaram os trabalhos, que começaram pela leitura de um capítulo do Evangelho. Em seguida, "tiveram a desopilante satisfação de assistir à intrusão de um Espírito galhofeiro, que foi preciso admoestar e excluir do círculo". Por que desopilante? E por que tão grande satisfação em presenciar as tolices de um pobre Espírito desorientado? É que a ignorância sempre acha engraçado aquilo que não entende. A certa altura, os russos perguntaram a Kardec por que não interrogava os Espíritos a cerca de política. A resposta de Kardec é a que sabemos: os Espíritos não se ocupam de tais coisas. E sabem daí o que conclui Vartier? Que, realmente, os Espíritos usavam de discrição no assunto e, assim mesmo, na intimidade. "Eles eram bem do estofo de seu mestre. Quem dispõe de rendimentos, não se compromete."

            Fica sem comentário ...

            Um modesto soldado de Napoleão, que se identificou como tambor durante a passagem do Berezina, é alvo predileto de galhofas, e o autor várias vezes se refere a ele. O drama contínuo e doloroso dos Espíritos aflitos, desorientados e infelizes é motivo de desopilante e inconsciente alegria por parte do Sr. Vartier. O avarento que não compreende por que ninguém o ouve quando ele tenta, inutilmente, impedir que seus herdeiros abram o cofre onde guardou "em vida" seu precioso dinheiro. O pobre camponês que, sabendo-se em Paris, "acredita bestamente" que veio de trem. O guloso, ainda preso à sua imperfeição, que vive a gemer de aflição em torno de mesas fartas de que não pode servir-se. O Sr. Vartier acha tudo isso divertidíssimo. "Os mortos do Sr. Allan Kardec, diz ele, não são mesmo felizes."

            Para ele é também motivo de ridículo S. Luiz transformado em "teórico da reencarnação", ou Sto. Agostinho em "um dos maiores vulgarizadores do Espiritismo". Tudo muito engraçado!

            Quando Kardec previne, em "O Livro dos Médiuns", que "o médium pode alterar a resposta (do Espírito) e assimilá-la às suas próprias ideias", é porque ele (Kardec), "sem nada perder da sua fé, teria perdido a sua segurança".

            Quando Kardec deseja saber de um Espírito sua opinião acerca da "Vida de Jesus", recentemente publicada, é porque o livro de Renan "bateu" "O Livro dos Espíritos" em  vendagem e Kardec está enciumado.

            Se Kardec lembra que o Espiritismo é científico, mas não se esquece de dizer que também é cristão, ele o faz "conforme a natureza do seu auditório". "Tinha ele - diz o autor - um seguro senso psicológico. Chamem a isso de oportunismo se pensam (como eu) que a aventura espírita de Allan Kardec guarda certa semelhança com uma aventura eleitoral." (A expressão entre parêntesis é, obviamente, do original.)

            Para o Sr. Vartier, a capacidade de organização e disciplina de Kardec, sua objetividade e liderança apenas revelam as virtudes de um excelente "businessman" à moda americana, um notável homem de relações públicas que, na divulgação da Doutrina dos Espíritos, só visava à promoção pessoal e aos lucros. Por isso, declara Vartier que "Allan Kardec sucumbiu, talvez, de um enfarte, como um Industrial de 1970". A causa, então atribuída ao aneurisma, seria mera ignorância dos médicos da época.

                                                                                  ***

            No capítulo XV, páginas 249 e seguintes, é traçado um retrato impiedoso de Kardec, sob o título: "Portrait d'un Reformateur" ("Retrato de um Reformador"). Os termos são estes: "Seria pouco convincente fazer o retrato de Allan Kardec sob forma de litania:

 “Ele não era um sábio. Orai por ele.
Ele não era um livre-pensador. Orai por ele.
Ele não era um herói. Orai por ele.
Ele não era um poeta. Orai por ele."

            Era, porém, um reformador, reconhece Vartier. "Homem aplicado, benévolo, praticava o esquecimento das injúrias, tanto por natureza, como por estratégia ... " (tinha de ter o ferrão para o veneno!), E prossegue: "Sabia ser discreto, quando necessário. Era otimista, mas também "um negociante da felicidade", um "administrador de sociedade anônima". "Explora o que acredita ser uma descoberta (que as mesas giram e que os Espíritos a fazem girar), em benefício do que ele acredita ser a felicidade da humanidade." Os parêntesis são do Sr. Vartier.

            "Com um cinismo tão inconsciente que raiava pela candura, o reformador identificava o apostolado com uma operação publicitária." O seu trabalho de divulgador nato, que consegue colocar ao nível de qualquer pessoa medianamente instruída as verdades mais elevadas, é tido por Jean Vartier não como notável poder de síntese e espírito analítico, mas como sinal de "uma bela inconsciência".

            A atração que a nascente doutrina exerce sobre os trabalhadores de condição social mais humilde é objeto de atenta especulação por parte do Sr. Vartier. Acha ele que tudo se resumia num processo de fuga, dado que ver as mesas girarem era diferente de vigiar engrenagens, motores e correias transportadoras ou aguentar as impertinências do contramestre.

            Logo a seguir, informa que, no decorrer das sessões, Kardec deixava de ser o "grande mestre" - coisa que ele jamais pretendeu ser - "para tornar-se um espírita entre outros" em torno dos médiuns. Pura demagogia, pois. "Estou convencido de minha parte - diz Vartier a seguir - que existe uma conexão entre o êxito prodigioso do Espiritismo nas camadas populares, no final do Segundo Império, e a eclosão da sociedade industrial." Acha ele que isso foi devido à urbanização, a uma certa liberdade de pensar e agir, ao anticlericalismo que visava a uma igreja que nada tinha mais a oferecer. "Allan Kardec e suas mesas foram os beneficiários de tal situação: da desorientação espiritual dos proletários sem raízes..."

            Quanto pouco caso pela inteligência e pela inata intuição dos estóicos trabalhadores anônimos! Vartier, porém, não identificou as razões profundas e verdadeiras do fenômeno que, aliás, tem raízes históricas inequívocas, pois aconteceu a mesma coisa com o advento do Cristianismo. É que o Espiritismo chegou no momento exato, com uma mensagem renovadora, quando mais evidente ia se tornando a falência das religiões estabelecidas. Os homens das classes mais sofisticadas sempre se entregaram ao falso brilho do materialismo "blasé", propalado pelos pensadores e cientistas de todos os tempos, desde a Grécia ... As camadas mais profundas do povo, porém, sem acesso fácil ao negativismo da moda, acolheram com entusiasmo uma doutrina que, em linguagem simples e acessível, mas não vulgar, lhes falava de uma vida após a morte e de outras vidas antes da vida. E que falava de Deus sem tentar explicá-Lo por meio de incompreensíveis ginásticas intelectuais. As razões que sempre levam o Espiritismo ao coração do povo são as mesmas que o tornam inaceitável aos orgulhosos, aos pretensiosos, aos sabichões: é a sua simplicidade, é a sua exigência de uma transformação moral e de uma reformulação de ideias e de atitudes. Não adianta nos plantarmos em nossa tola superioridade e esperarmos desafiadoramente que a Doutrina nos convença e nos tire da nossa ignorância. A palavra é essa mesma, porque a ignorância pode coexistir com a mais avançada cultura. Temos que nos aproximar da Doutrina desarmados de preconceitos, com humildade intelectual, dispostos a desaprender muito do que pensávamos que sabíamos para poder aprender aquilo que ignoramos. O homem de coração simples vai mais rápido porque a simplicidade da Doutrina ressoa logo no seu espírito. Aquele que está vazio de esperança e carregado de desencanto reencontra razão para continuar vivendo e até mesmo seguir sofrendo as suas dores. O intelectual não precisa, porém, renunciar à sua lógica, à sua inteligência e à sua cultura, mas certamente terá muito que reformular no seu acervo de conhecimentos, rever sua hierarquia de valores e trocar algumas posições...

            Por tudo isso, o povo chega primeiro à Doutrina Espírita, como chegou primeiro ao Cristianismo. Basta lembrar a frustrada tentativa de Paulo em Atenas. Também na Roma orgulhosa aconteceu o mesmo. Enquanto os intelectuais ridicularizavam a doutrina de Jesus os poderosos a perseguiam e os nobres a desprezavam, os escravos morriam por ela de sorriso nos lábios.

* * *

            Mas vejamos, para concluir, as palavras finais do Sr. Jean Vartier, no seu livro infeliz. Ignorando todo o trabalho de pesquisa realizado no século que passou, acha ele que o Espiritismo - e aqui inclui a Teosofia - está superado. A interpretação dos fenômenos "forjada" pelo Espiritismo "não atende nem à lógica, nem ao bom senso, muito menos ainda ao rigor científico". O movimento das mesas - o Sr. Vartier ainda está pensando nas mesas girantes - é realmente uma "evidência física", mas mesmo descontados as fraudes e os "movimentos inconscientes e ruídos musculares" - ele ainda acredita nisso -, não há sentido em continuar em torno das mesas girantes e "cultivar mais longamente a confusão de valores".

            Essa expressão é um achado! Parece que, para o Sr. Vartier, essa história de Espiritismo é muito incômoda, porque nos leva a uma reformulação muito grande de ideias que nos são muito caras e que por certo alimentam nosso orgulho. O Espiritismo ensina que o homem não é o único ser inteligente no universo, nem mesmo o mais inteligente. Que somos totalmente responsáveis pelos nossos atos perante a lei divina. Que podemos, amanhã, renascer miseráveis, aleijados e infelizes, se isso for necessário ao nosso reajuste. Que a dor é instrumento de resgate, aperfeiçoamento e advertência. Que acima de nós há um poder superior, ao qual devemos respeito e amor. Que o nosso próximo não é um inimigo que cumpre ignorar, desprezar ou eliminar, mas um companheiro na belíssima aventura da vida imortal, que devemos aprender a amar. Não há confusão de valores coisa alguma; o que há é que precisamos colocar nossos valores em nova sequência, com novos arranjos, sob nova hierarquia.

* * *

            Entende, ainda, Jean Vartier que nem tudo deve ser rejeitado na doutrina coordenada por Kardec e - aí vai novamente a farpa - "notadamente entre os dogmas (!) de que ele se apropriou em outros". Entre as coisas que se salvam, está o perispírito, "herdeiro do corpo astral, em razão mesma dos seus antecedentes ocultistas' (pág. 294). Cita, a propósito, o professor Jean Lhermitte, que, em 1956, no colóquio de Parapsicologia em Royaumnont, "descreveu fenômenos de bilocação que afetam certos doentes. Tais doentes tem a consciência perfeita da separação entre perispírito e corpo físico".

            Nessa mesma oportunidade, um antropólogo chamado Pierre Barrucand declarou que o corpo astral conta com "certo número de argumentos a seu favor, por mais incômodo que seja isso à nossa concepção do mundo" (grifo meu).

            Tudo isto parece muito certo ao Sr. Jean Vartier, porque assim o disseram os sábios em quem ele confia. O problema é que "a divagação espírita começa quando se faz desse elemento o invólucro dos desencarnados ou das almas dos vivos em plena vagabundagem durante o sono do corpo".

            Enfim, o perispírito pode existir, sim senhor, pode separar-se em certas doenças, conta vários argumentos a seu favor, vai ao extremo de invalidar "nossa concepção do mundo", mas isso de envolver encarnados e desencarnados, essa não! O Sr. Vartier não quer!

            Longe dele, porém, sustentar que a ciência de 1970 já tenha "dominado todos os fenômenos sobre os quais Allan enxertou suas fantasias pseudocientíficas". Concede ele, generosamente, que ainda há alguma coisa a elucidar "no domínio, por exemplo, da atividade premonitória e das percepções a distância" (sic). O resto, para Vartier, está "elucidado". Afinal de contas, diz ele pouco adiante (pág. 296), é preciso salvaguardar o meio ambiente. "Não somente na luta contra a poluição do ar e das águas, mas também pelo respeito a algumas regras elementares de defesa contra a poluição mental."

            Aí está, pois, a chave do livro do Sr. Jean Vartier. Na sua opinião, o Espiritismo não tem feito outra coisa senão espalhar poluição mental, e o Sr. Vartier elegeu a si mesmo inflexível defensor do meio ambiente.

            Orai por ele. Não no tom irônico da sua litania anti-Kardec, mas a sério, pedindo a Deus que, quando chegar a hora da reconstrução, possa ele dispor da mesma energia, da mesma coragem e do mesmo ardor de que agora se utiliza na ingênua e melancólica tentativa de demolir o que não entendeu

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