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sexta-feira, 6 de novembro de 2015

O Grande dia do Calvário


De um pequeno grupo de toscos abrigos numa encruzilhada, Roma galgou as culminâncias do poder temporal, ao conquistar todo o mundo conhecido, que manteve durante dois séculos subjugado à sua espada, mas pacificado e em segurança. Depois, lenta e inapelavelmente, entrou em decadência, até o colapso final, derrotada mais pelas fraquezas de seus próprios líderes do que pela força dos inimigos externos. Will Durant, no terceiro volume da sua História da Civilização, diz que esse é "seguramente o maior drama jamais representado pelo homem" e acrescenta: "A não ser aquele outro drama que começou quando César e Cristo colocaram-se face a face no tribunal de Pilatos, e
continuou até que um punhado de cristãos perseguidos cresceu pacientemente no tempo enfrentando perseguições e terror, para serem primeiro os aliados, depois, os mestres e, afinal, os herdeiros do maior império da História."

            O método de trabalho de Will Durant é o da história total, a que ele chama sintética, segundo o qual, selecionado o período para exame, coloca num só painel todos os fatos e inferências que emergem daquele período. Em contraposição ao seu método, há a história analítica, que destaca um tema como a arte, a religião ou a política e o estuda através dos tempos. Durant reconhece que ambos os processos têm méritos próprios, tanto quanto limitações.

            No terceiro volume da sua história, o tema é o da civilização romana e do Cristianismo, desde o ano 800 antes do Cristo até o ano 325 da nossa era. Escolheu um titulo sugestivo para rotular essa fatia da História: "César e Cristo".

            Na verdade, o momento em que Jesus se coloca diante de Pilatos marca um ponto em que duas épocas se encontram, duas filosofias se medem, duas visões diferentes do mundo se revelam. Sobre esse tema fascinante muito se tem escrito, pois não escapou aos espíritos mais argutos a tremenda importância daquele simbolismo: César e Cristo. As lições que o episódio contém conservaram intacto o transcendental poder de sugestão, oferecendo continuamente material para meditação, do qual diretrizes sempre renovadas podem surgir se as buscamos com espírito de humildade e os olhos de ver de que nos falam os Evangelhos.

            Will Durant não desce, no seu exame do encontro, às profundezas das razões motivadoras.  Se o fizesse, estaria realizando história analítica, que não é a sua província. Diz, no entanto, o suficiente para a compreensão do drama. Esclarece que o Sinédrio declarou Jesus culpado de blasfêmia - crime então considerado capital - e decidiu levá-lo ao Procurador romano.

            É evidente que poderia ter executado o condenado. Poucos anos depois, pelo mesmo "crime", concederia a Saulo de Tarso a penalidade capital por apedrejamento, solicitada para Estêvão.

            No caso de Jesus, no entanto, o Sinédrio mostrava-se mais cauteloso, porque a figura pública do Cristo assumira proporções muito grandes e era melhor inventar conotações políticas e deixá-lo entregue aos romanos, que arcariam com o ônus da execução.

            O papel de Pilatos é bem conhecido na História, mas a sua psicologia não ficou muito bem definida. Durant diz que foi um homem duro, que mais tarde foi chamado a Roma para responder a acusações de extorsão e crueldade, sendo então exonerado de suas funções. Não viu, porém, em Jesus, o perigo que desejavam que ele visse.

            A Enciclopédia Britânica informa que ele governou a Judeia desde o ano 26 até 36 da nossa era. Conservou a província em ordem, mas não revelou boa compreensão acerca do povo judeu, segundo depoimento de Josefo e Fílon. Chegou mesmo a provocar um distúrbio popular, ao utilizar-se de recursos do templo para construir um aqueduto. Lucas também se refere ao massacre de galileus indefesos que faziam sacrifícios. Era, porém, um cargo difícil aquele e, sem dúvida, Pilatos não se saiu muito mal dos pontos de vista administrativo e político, dado que permaneceu no posto 10 anos. Talvez sua figura tenha sido algo distorcida pelos primeiros historiadores, que apenas viam nele o homem que condenou Jesus. Muitas lendas se ligaram a ele posteriormente. Houve quem dissesse que ele se tornou cristão. Outros dizem que se suicidou. A Britânica informa que ele foi canonizado pela igreja abissínia e, sua esposa Prócula, igualmente canonizada pela igreja grega.

            Do ponto de vista meramente histórico é uma importante figura do grande dia. Há outras menores: Anás, Caifás, Herodes, Prócula, Barrabás. Há algumas coletivas, como o povo enfurecido que pedia sangue. Dentre todas avulta, naturalmente, a de Jesus. O mundo espiritual nos revelaria mais tarde outras personagens do imenso drama, pois, naquela encruzilhada da História, não apenas se julgava o Messias Nazareno, mas defrontavam-se duas correntes do pensamento humano: a força e a justiça. Eram dois esquemas diferentes, duas sínteses cujos choques constantes ecoam e se repetem através da lenta evolução humana. Tanto uma como outra tem sido abastardada e aviltada. A força inúmeras vezes tem degenerado em opressão e a justiça em vingança. Na realidade, poderiam conviver, buscando um ponto de equilíbrio e harmonia, ou até mesmo se fundirem num só conceito: a força da justiça. Lá chegaremos, por certo, quando a força recuar da posição de ato à de potência e quando a justiça lavar-se das manchas e mazelas que a imperfeição humana lhe emprestou.

            Não podemos nos esquecer de que força e justiça não existem por si mesmas; são resultantes do procedimento humano e como poderemos ter o equilíbrio da força expectante, potencial, como qualidade intrínseca, ou a justiça purificada, dinâmica, antes que o próprio homem alcance estágios mais equilibrados na sua rota evolutiva? Enquanto isso, o direito que emana do poder e se ministra através da justiça, também é falho e imperfeito. Ao julgar o Cristo, o representante de César era praticamente forçado a condená-lo, ainda que nele não visse crime algum. Estava investido da força do poder e sob a pressão da justiça vingativa. Era a justiça aviltada que exigia da força corrompida a eliminação do justo, para que triunfasse a injustiça. O equilíbrio entre a força e a justiça andava por aqueles tempos em baixíssimos níveis. Era preciso mantê-lo assim, para que a imperfeição humana continuasse a exercer a força e o arremedo de justiça.

            Will Durant informa que Pilatos não tinha alternativa senão condenar o Cristo, depois que o próprio acusado admitiu ser o rei dos judeus, pois tinha vindo ao mundo, segundo João, para "dar testemunho da verdade". Pilatos aproveitou a oportunidade para perguntar o que é a Verdade.

            Embora suspeitando de que a pergunta seja mais devida às tonalidades metafísicas do Quarto Evangelho, Durant reconhece que ela revela nitidamente "o abismo entre a cultura sofisticada e cínica do romano e o idealismo humanitário e confiante do judeu".

            No fundo mesmo, o que vamos encontrar nesse episódio é o confronto da força com o amor, porque a justiça sem amor é fria e implacável, e a força sem o amor é cruel e desastrosa. O encontro do Cristo e César é bem mais que um simbolismo; é um teste para saber até que ponto os representantes do poder estariam preparados para reconhecer o poder da justiça pura. Não estavam.

            César é o passado que persiste, Cristo é o futuro que se anuncia; um se apoia na matéria transitória, outro representa o espírito que fica e sobrevive. É clara a opção, nítida a solução na perspectiva que proclama há milênios a vitória do espírito sobre a matéria, sobre a carne, sobre os vícios e mazelas que se alojarão no espírito somente enquanto este insistir em ficar voltado para a matéria.

            Jesus desejou mostrar que o próprio homem dispõe de recursos para promover o seu auto aperfeiçoamento e, por conseguinte, o aperfeiçoamento da sociedade em que vive. Essa, a sua verdade, mas de que lhe servia, ali, naquele momento, explicar a Pilatos o que era a Verdade? Diante do abismo que separa os dois sistemas - o da força e o da justiça - nada mais restava fazer senão esperar, porque a Verdade exige de quem a contempla um grau mínimo de maturidade espiritual; ao contrário, nem será percebida, da mesma forma que os Espíritos ainda presos às suas inferioridades também não percebem a presença daqueles que estão colocados em planos superiores de evolução. E assim, do ponto de vista humano, naquele momento, parecia que o Cristo se retirava derrotado. Teria sido prematuro o confronto? Podemos responder, enfaticamente, que não. Jesus trouxe a sua mensagem no tempo certo. O homem caminha muito lentamente ao longo da escala evolutiva. Para que ele alcance um dia um patamar de equilíbrio entre conhecimento e moral, a fim de utilizar-se inteligentemente da força e da justiça, ou antes da força da justiça pura, a meta terá de ser mostrada a ele com antecedência de milênios. O Cristo sabia, diante de Pilatos, que não importava a profundidade escura do abismo que separava os dois sistemas; o importante ali é que os homens um dia haveriam de reconhecer a existência do abismo. Como poderiam atravessá-lo sem antes identificá-lo? Como poderiam galgar o equilíbrio e o amor se não viesse alguém - e veio o próprio Jesus - mostrar que havia uma meta a ser alcançada, um dia... um dia...

            Para chegar àquele momento em que a sua mensagem seria pelo menos entendida, já não se diz praticada, teria ele de viver o grande dia do calvário.

            Como é que o mundo espiritual nos conta o drama daquele dia inesquecível?


* * *

            Em "Herculanum", o Espírito Conde de Rochester, utilizando-se da mediunidade da Sra. Krijanowsky, narra episódio que oferece uma faceta do drama.

            Fugindo da terrível erupção do Vesúvio, Caius, ferido, é recolhido por um eremita que lhe conta a participação que teve no grande dia.

            Fora, naquele tempo, um centurião a serviço de César, na Palestina. Chamava-se Quirilius Cornelius e seu primeiro contato com o Cristo resultou de uma tarefa que lhe foi solicitada pelo seu comandante. Há dois anos um homem andava pela Galiléia pregando estranha doutrina. Cornelius deveria segui-lo secretamente para ver se havia fundamento na denúncia do Sumo Pontífice dos judeus de que o homem tinha ambições políticas.

            Cornelius, que aprendera a língua nativa para poder entender-se melhor com Abigail, sua amada, partiu, observou o Mestre, acompanhou-o por algum tempo, ouviu-lhe a palavra, assistiu aos seus milagres e voltou para dizer que nada via nele que pusesse em risco a paz e a segurança do Estado.

            Uma noite, ao entrar em casa de Abigail, percebeu grande agitação e angústia. Perigo iminente ameaçava o bom profeta galileu, a cuja doutrina a jovem se convertera. Davi, seu irmão, viera avisá-la, na esperança de que alguém pudesse chegar até o Mestre e preveni-lo, a fim de que ele fugisse para longe de Jerusalém.

            Cornelius não conseguiu dormir naquela noite. Logo cedo, na manhã seguinte, localizou Davi, que o informou que Jesus já se encontrava a caminho do palácio de Pilatos, Muitas forças se punham em ação naquele momento para salvar Jesus. Cornelius, porém, informa que eram decretos da Providência. Inútil lutar. Até o procônsul tentou salvá-lo, sem êxito.

            Pronunciada, afinal, a sentença, Jesus foi confiado à guarda do próprio Cornelius,  que teve um gesto de extraordinária renúncia e dedicação. Postou-se pessoalmente à porta do cubículo, ao qual Jesus havia sido recolhido e, ao conseguir uma oportunidade para estar a sós com ele, fez-lhe uma proposta: poderia escapar para a liberdade e a vida. Trocariam de roupa e o centurião entregaria a sua vida pela do Mestre.

            - Deixa-me morrer em teu lugar, porque a vida de um soldado obscuro não vale a de que, como tu, é providencial e benéfica aos enfermos e desgraçados.

            Jesus agradeceu comovido, mas não podia aceitar. "Seu rosto, diz a narrativa mediúnica, transpirava uma calma celeste... Olhava-me com velado olhar de melancólica doçura ... "

            Agradeceu e falou ao romano do sacrifício de permanecer no mundo em que lhe era tão difícil praticar o bem. Quanto à morte, não o assustava, por mais infamante que fosse. Confessava-se pastor de todo o rebanho: "Desde o dia da criação deste mundo expiatório, a mim me compete esclarece-lo e selar com o próprio sangue as verdades que predico. Tal é a vontade do Pai."

            Nesse ponto, ouviram-se vozes no corredor. Uma mulher estava diante dos soldados em evidente estado de aflição. Queria ver o prisioneiro, seu filho. Cornelius deixou-a entrar e assistiu à entrevista dolorosa. Ante a angústia de sua mãe, Jesus lembrou-lhe carinhosamente de que ela fora preparada por ele mesmo para aquele momento supremo. Ela que o entendera e acreditara nele, agora chorava e sofria? Será que a morte a apavorava? Não sabia que a separação era apenas temporária? Teria perdido a fé? Maria reagiu prontamente. Beijou-lhe a mão e prometeu mostrar-se digna do filho que tinha. Até o fim.

            Voltando-se para o centurião, pediu-lhe que a deixasse acompanhá-lo até o lugar do suplício.  Se o povo tinha esse direito, por que não ela? Cornelius concordou.

            Chegado o momento, Cornelius deu as ordens necessárias à crucificação, mas desviava o olhar porque as marteladas lúgubres ecoavam dolorosamente no seu coração.

            Tentara, mas não conseguira salvar o Cristo. Em compensação, o Cristo salvou-o, porque ele guardou até o fim daquela existência, e as levou para o futuro, as visões inesquecíveis do grande dia. Segundo se observa em nota de rodapé, à pág. 192, da 4ª edição da FEB, no entender do Conde de Rochester, autor do romance, Quirilius Cornelius seria, séculos mais tarde, João Huss, o reformador queimado em Constança, em 1415.

* * *

            Quem mais teria estado presente aos acontecimentos daquele dia memorável?

            Vimos alguém que tentou impedir o sacrifício do justo, esmagado pela força. Vejamos agora alguém que atiçou os ânimos para que a força se desatasse contra o justo. Esse depoimento dramático está contido em "Memórias de um Suicida", obra mediúnica de responsabilidade da querida irmã Yvonne A. Pereira (4ª edição, da FEB).

            Ajudado pelo Espírito Léon Denis, Camillo Cândido Botelho descreve uma sessão de regressão de memória realizada no mundo espiritual, durante a qual seu Espírito endividado mergulha fundo no passado que sempre explica as nossas dores e as nossas humildes conquistas.

            Sob o império da vontade de um amigo espiritual, começou a sentir-se envolvido por "singular entorpecimento, como se tudo ao meu redor rodopiasse vertiginosamente". Já não distinguia mais a figura daquele que dirigia os trabalhos; "sequer o conhecia, e nem me recordava de meus companheiros de infortúnio ... Todavia, eu não adormecera! Continuava lúcido e raciocinava, refletia, pensava, agia, o que indica que me encontrava na posse absoluta de mim mesmo ... embora retrocedesse na escala das recordações acumuladas durante os séculos! . .. Perdi, pois, a lembrança do presente e mergulhei a Consciência no passado ..."

            Viu-se, então, no ano 33 da era Cristã, na velha cidade de Jerusalém. Não estava simplesmente se recordando - vivia a época e estava nela, como realmente esteve.

            Toda a cidade agitava-se desde a manhã, naquele dia ensolarado e quente. Sentia-se possuído de uma "alegria satânica", enquanto perambulava pelas ruas cheias de gente de toda parte. Promovia arruaças, soprava intrigas, espalhava boatos, incentivava desordens, "pois estávamos no grande dia do Calvário", Um certo revolucionário, chamado Jesus acabara de ser condenado à crucificação. Foi ao Pretório, pois sabia que dali sairia ele para a execução. Não queria perder o espetáculo.

            - Eu era miserável, pobre e mau. Devia favores a muitos judeus de Jerusalém. Comia sobejos de suas mesas. Vestia-me dos trapos que me davam.

            A narrativa é intensa e preserva para o leitor moderno todas as cores de sua dramaticidade. Ali estava ele afinado com os ódios que se desatavam incontroláveis sobre o jovem pregador de Nazaré, Aplaudiu a "figura hirsuta e torpe de Barrabás", mas não perdoava a tentativa de Pilatos para salvar o Mestre. Ao contrário, pediu "a execução deste em estertores de demônio enfurecido, pois aprazia-me assistir a tragédias, embebedar-me no sangue alheio, contemplar a desgraça ferindo indefesos e inocentes, aos quais desprezava, considerando-os pusilânimes"...

            E acrescenta:

            - E presenciar aquele delicado jovem, tão belo quanto modesto, galgando pacientemente a encosta pedregosa sob a ardência inclemente do Sol, madeiro pesado aos ombros, atingido pelos açoites dos rudes soldados de Roma contrariados ante o dever de se exporem a subida tão árdua em pleno calor do meio-dia, era espetáculo que me saberia bem à maldade do caráter e a que, de qualquer forma, não poderia deixar de assistir!..

            No entanto, ao contemplar esse passado, ainda que vivendo-o de novo, pode conservar alguma coisa das modestas conquistas espirituais que, apesar de tudo, havia conseguido, pois um movimento inexorável de remorso tomou-lhe todo o ser. Era ainda aquela figura hedionda que se comprazia no espetáculo criminoso do sacrifício de um inocente, ao mesmo tempo em que percebia, agora, toda a angústia da sua baixeza e bradava perdão, num grito que "ecoava por todos os recôncavos do meu Espírito".

            Continuava, não obstante, a assistir novamente ao doloroso espetáculo até o amargo fim. Via-se em frente ao Pretório, sempre hostil e desprezível.

            - Não houve insulto que minha palavra ferina deixasse de verberar contra o Nazareno. Feroz na minha pertinácia, acompanhei-o na jornada dolorosa gritando apupos e chalaças soezes; e confesso que só não o agredi a pedradas ou mesmo à força do meu braço assassino, por ser severo o policiamento em torno dele. É que eu me sentia inferior e mesquinho em toda parte onde me levavam as aventuras. Nutria inveja e ódio a tudo o que soubesse ou considerasse superior a mim! Feio, hirsuto, ignóbil, mutilado, pois faltava-me um braço, degenerado, ambicioso, de meu coração destilava o vírus da maldade. Eu maldizia e perseguia tudo, tudo o que reconhecesse belo e nobre, cônscio da minha impossibilidade de alcançá-lo!

            Sempre no cortejo tumultuado, insultou a figura humilde e aflita de Maria, berrando-lhe difamações. E agora, enquanto mergulhava nas memórias terríveis daquele passado tenebroso, abrigava-se numa instituição espiritual que funcionava exatamente sob a direção suprema de Maria, aquele mesmo ser angelical que ele próprio procurara aviltar no caminho do Calvário.

            A sanha demolidora continuou depois. Denunciou cristãos, perseguiu, espionou, maltratou pessoalmente aqueles que podia, ajudou a apedrejar Estêvão, praticou todas as infâmias que lhe ocorreram à mente deformada.

            Foi naquele grande dia do Calvário, o miserável instrumento da força divorciada da justiça. Recolhia agora as bênçãos do amor, através das quais a própria Maria lhe mostrava os diferentes caminhos que perlustra a justiça contida nas leis de Deus.

* * *

            No capítulo VIII de "Há Dois Mil Anos" (edição da FEB), Emmanuel apresenta o seu depoimento sobre o grande dia.

            Pouco antes, surpreendera Lívia, a esposa, em trajes plebeus, regressando de um encontro que tivera com o Mestre, em companhia de Ana, sua serva, e Simeão, tio de Ana. Lívia tivera a feliz oportunidade de ouvir do próprio Jesus os ensinamentos que passaram à História com o nome de Sermão do Monte e de assistir e participar do chamado milagre da multiplicação dos pães.

            Ao aproximar-se a Páscoa do ano 33, a família do senador Públio Lentulus deslocou-se para Jerusalém, na esperança de que, na turba que então procurava a cidade sagrada, descobrisse Marcus, o filho raptado.

            Foi Ana quem comunicou à senhora que Jesus chegara a Jerusalém e que Simeão também, a despeito de sua avançada idade, viera na multidão que o acompanhava.

            Nessa altura, envenenado por suspeitas e intrigas, o senador e a esposa viviam sob o mesmo teto, mas como estranhos que a calúnia separara dolorosamente.

            Um dia, pela manhã, Ana comunicou à senhora que Jesus havia sido preso. Se outras fossem as condições, Lívia recorreria ao prestígio do marido para tentar salvar o Mestre, mas agora tudo se lhe tornara difícil, de vez que ele nem sequer lhe concedia a oportunidade de dirigir-lhe a palavra. Mesmo assim, tentou aproximar-se do marido, esperando-o no compartimento contíguo do seu gabinete de trabalho. Logo, porém, surgiu Sulpício Tarquinius que, da parte de Pôncio Pilatos, vinha solicitar a presença do senador no palácio do governo.

            Públio partiu imediatamente, sendo recebido pelo procurador num salão amplo, onde já se encontravam alguns patrícios mais destacados, o pretor Sálvio, militares graduados e uns poucos romanos civis de posição.

            Pilatos desejava aconselhar-se com Públio Lentulus que, como senador, representava a autoridade máxima nas províncias por onde transitava. O problema em foco era o julgamento de Jesus. O procurador não via nele nenhuma culpa, "senão a de ardente visionário de coisas que não posso ou não sei compreender". Estava, no entanto, impressionado com seu penoso estado de pobreza. Além do mais naquela mesma noite, Cláudia, sua mulher, sonhara que uma voz recomendava que ele não deveria arriscar sua responsabilidade no julgamento daquele homem justo. Resolvera agir com toda prudência e por isso reunira os romanos mais eminentes em Jerusalém para ouvir seus conselhos e sugestões. Era evidente, pois, que naquele pequeno grupo não poderia faltar Públio Lentulus, a maior autoridade romana naquelas paragens, no momento.

            O senador recordou intimamente os benefícios que recebera de Jesus e declarou, por fim, ter conhecido de perto o profeta de Nazaré, em Cafarnaum, "onde ninguém o tinha na conta de conspirador ou revolucionário".

            - Suas ações, ali - continuou -, eram as de um homem superior, caridoso e justo, e jamais tive conhecimento de que sua palavra se erguesse contra qualquer instituto social ou político do Império.

            E já que Roma nada tinha de concreto contra ele, por que Pilatos não o remetia ao julgamento de Herodes, que representava, naquele instante, o governo da Galileia em Jerusalém?

            A ideia foi acolhida prontamente, com alívio geral, mas dentro em pouco voltava Jesus, recambiado por Herodes que o fizera cobrir de ridículo e sarcasmo, envolvendo-o num grotesco manto real, coroando-o de espinhos e fazendo-o segurar um cetro de pau. A turba compreendeu o alcance daquele sórdido humor negro e mais excitada ficou ante a figura paciente e melancólica do Cristo.

            Pilatos recebeu-o de volta, mais certo do que nunca de que aquele homem era um justo. No entanto, a pressão psicológica da multidão continuava a aumentar de momento a momento. Polibius, que Emmanuel descreve como homem sensato e honesto, era o elemento de ligação entre o grupo reunido no salão do palácio e a multidão enfurecida, lá fora. Veio avisar que o povo ameaçava invadir o edifício se a sentença do Sinédrio não fosse imediatamente confirmada.

            Pilatos resistia ante o absurdo da situação. Quis saber o que dizia o profeta. O profeta estava sereno e resignado, deixando-se "conduzir pelos seus algozes com a docilidade de um cordeiro", sem nada reclamar. Era a informação de Polibius. Ante a interpelação de Polibius, que lhe acenara com a possibilidade de um apelo a Pilatos, a fim de conseguir um processamento regular do seu caso e provar sua inocência, retrucou que dispensava a proteção política dos homens "para confiar tão-somente numa justiça que diz ser a de seu Pai que está nos céus"!

            Pilatos estava impressionado. Homem extraordinário, aquele.

            Que fazer? Polibius sugeriu que mandasse açoitá-lo, pois assim talvez se saciasse o ódio da multidão. Públio Lentulus, que seguia o diálogo, mostrou-se inquieto ante a perspectiva de mandar castigar tão duramente o acusado, mas Pilatos achou que valia a pena tentar o recurso para salvar a sua vida. E assim, diante do povo tumultuado, Jesus foi impiedosamente castigado, mas parece que a punição, em vez de apagar as chamas do ódio, ainda mais a avivaram, porque continuaram a exigir-lhe a vida.

            Nesse ponto o senador quis ver a vítima de todas aquelas paixões descontroladas. Encontrou-o batido pela adversidade, com o rosto marcado pelo sofrimento, onde lágrimas, sangue e suor se misturavam penosamente; no entanto, seu "olhar profundo saturava-se da mesma beleza inexprimível e misteriosa, revelando amargurada e indefinível melancolia". Por um momento cruzaram-se os olhares: o representante de César do lado da força e o representante do Espírito, do lado da justiça. A força iria vencer o primeiro encontro, mas, curiosamente, tal como nos deixa ver hoje o depoimento de Emmanuel, não foi a força cega do poder incontestável que ditou a sentença cruel, foi a fraqueza mesma que havia naquela força, que não soube resistir aos apelos do ódio insuflado na multidão enfurecida.

            Mais uma vez retorna Polibius a Pilatos para comunicar que nem o açoitamento conseguira aplacar a violência daqueles que queriam mais e não deixavam por menos. Públio Lentulus recomendou o recurso legal de substituir o profeta por algum prisioneiro já condenado. Era evidente que nem ele nem Pilatos desejavam a destruição do jovem profeta. O procurador lembrou-se de Barrabás e mandou oferecer a alternativa ao povo, mas pelos gritos que vinham da rua viu logo que tinha sido também recusada. Queriam mesmo a vida de Jesus intransigentemente, inapelavelmente. Não obstante, ainda hesitava em conceder aquilo que a multidão teimava em exigir-lhe.

            Públio o apoiava, dizendo da impropriedade jurídica de decidir tão precipitadamente caso tão grave quanto era o julgamento de uma vida humana. Tivesse ele no exercício pleno do poder, mandaria dispersar a multidão à pata de cavalo. A decisão, porém, cabia a Pilatos que, com a sua experiência de sete anos na província, conhecia melhor o terreno em que pisava.

            Prosseguiu dizendo que, como homem, se declarava contra aquele povo inconsciente e tudo faria para salvar o acusado; mas como cidadão romano, achava que não deveria interferir nos grandes problemas morais da província que era uma unidade do Império. Deixaria, pois, a responsabilidade daquele crime "exclusivamente a essa turba ignorante e desesperada e aos sacerdotes ambiciosos e egoístas que a dirigem".

            Enquanto Pilatos meditava sobre o sentido dessas palavras, Polibius entrou novamente e trouxe o argumento final que a inventiva do mal havia descoberto para o esforço supremo da pressão psicológica: alguns maldizentes começavam a duvidar da fidelidade de Pilatos aos poderes de César, ante a sua hesitação de esmagar um conspirador. Só então Pilatos tomou sua decisão. Lavaria as mãos daquele crime. Que se regozijasse o povo de Jerusalém. Dirigiu algumas palavras ao condenado e mandou recolhê-lo à prisão, subtraindo-o temporariamente à sanha da massa enfurecida.

            Desde aquele momento até que Jesus partiu para o Gólgota, ninguém o procurou para interceder pelo condenado.

* * *

            Logo, porém, Lívia soube por Ana da sentença injusta e se pôs em campo para tentar salvar o Mestre. Vestiu-se novamente com trajes populares e partiu com Ana e Simeão para o Palácio do Governo. Há uma hora partira o cortejo em direção ao Gólgota. O tempo urgia. Maliciosamente encaminhada para o aposento onde Pilatos recebia suas amantes, Lívia enfrentou com nobreza e coragem o assédio do procurador, que secretamente a desejava. Podemos imaginar a angústia indescritível daquela mulher extraordinária, na qual o sofrimento e a humilhação não apagaram os traços de beleza. Até mesmo naquele momento supremo de aflição, em que vinha implorar ao poderoso representante da força a vida preciosa de Jesus, aquele homem não via nela senão o objeto de suas paixões inferiores.

            Ah, o grande dia do Calvário... quantos dramas menores à sombra da grande tragédia...

            Enquanto isso, Fúlvia manobrava para que Públio visse, ele mesmo, Lívia sair derrotada, enojada e infeliz da câmara secreta de Pilatos. Enquanto isso, Ana e Simeão, na rua, aguardavam em estado de impaciente angústia as gestões de Lívia. Enquanto isso, homens hediondos, como aquele pobre infeliz de um só braço, gritavam impropérios ao condenado. Enquanto isso, Maria seguia heroica e resignada, o cortejo sinistro, pois prometera ser digna do jovem profeta. Enquanto isso, Quirilius Cornelius comandava os soldados que custodiavam o condenado. E, enquanto isso, duas épocas se encontravam, duas filosofias, duas correntes de pensamento, dois símbolos: a luz e a treva. Por enquanto, ganhava a treva vencia o orgulho, dominava o egoísmo, prevalecia a força. Naquela mesma escuridão, porém, havia um prenúncio de alvorada, a semente da luz estava no seu bojo, as lições da humildade ali se continham também e os reflexos do amor não puderam ser de todo sufocados pelo ódio que parecia tudo avassalar. Diante da força, a justiça esperava paciente e confiante, porque aqueles mesmos homens que ali estavam executando as tarefas do ódio desatado voltariam para ajudar a reconstrução da vida sobre os alicerces do amor.

            São muitas, assim, as lições do grande dia do Calvário, mas um aspecto avulta a todos os demais: é o que nos adverte de escolher certo as opções que se nos apresentam nos grandes momentos das nossas vidas. Nossas paixões são más conselheiras, os interesses pessoais nos amarram ao passado lamentável e impiedoso. No jogo entre as posições humanas e os interesses superiores do espírito imortal, tendemos a optar pelos aspectos que nos evidenciam diante dos homens e não por aqueles que nos redimem diante das leis de Deus. Entre o orgulho e a humildade, costumamos ficar com aquele. Entre a oportunidade de servir e amar e o impulso de acomodar-se ao egoísmo, ficamos com este. E nem percebemos que, com nossas atitudes, espalhamos dor, retardamos a marcha evolutiva, não apenas a nossa, mas a de outros espíritos a quem as nossas escolhas influenciaram. Entre a força e a justiça, decidimos quase sempre pela força, na terrível ilusão de que estamos apoiados na justiça.

            A nós que estamos hoje na posse de tão nobres conhecimentos doutrinários, que conhecemos o mecanismo sábio de algumas das mais importantes leis divinas, a nós incumbe não esquecer o vulto das responsabilidades diante das tarefas modestas ou mais importantes. Somos bisonhos depositários de uma verdade maior. Cuidado com ela, para que alguns séculos mais tarde não tenhamos de voltar sobre nossos passos para trocar penosamente os erros cometidos em nome da força, pelos impulsos generosos do amor, apoiados na justiça pura, humanizada, divinizada, iluminada.

O Grande Dia do Calvário
Hermínio C. Miranda

Reformador (FEB) Outubro 1972

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