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sexta-feira, 24 de julho de 2015

Carta de um morto

         Pede-me você notícias do cemitério nas comemorações de Finados. E como tenho em mãos a carta de um amigo, hoje na Espiritualidade, endereçada a outro amigo que ainda se encontra na Terra, a cerca do assunto, dou-lhe a conhecer, com permissão dele, a missiva que transcrevo, sem qualquer referência a nomes, para deixar-lhe a beleza livre das notas impessoais.

            Eis o texto em sua feição pura e simples:

            Meu caro, você não pode imaginar o que seja entregar à terra a carcaça hirta no dia dois de Novembro.

            Verdadeira tragédia paro o morto inexperiente.  

            Lembrar-se-á de que o enterro de meu velho corpo,  corroído pela doença, realizou-se ao crepúsculo, quando a necrópole enfeitada parecia uma casa em festa.

            Achava-me tristemente instalado no coche fúnebre, montando guarda aos meus restos, refletindo na miserabilidade da vida humana...

            Contemplando de longe minha mulher e meus filhos, que choravam discretamente num largo automóvel de aluguel, meditando naquele antigo apontamento de Salomão - "vaidade das vaidades, tudo é vaidade" -,  quando, à entrada do cemitério, fui desalojado de improviso.

            Da  multidão irrequieta dos vivos na carne, vinha a massa enorme dos vivos de outra natureza. Eram desencarnados às centenas, que me apalpavam curiosos, entre o sarcasmo e a  comiseração.

            Alguns me dirigiam indagações indiscretas, enquanto outros me deploravam a sorte.

            Com muita dificuldade, segui o ataúde que me transportava  o esqueleto imóvel e, em vão, tentei conchegar-me à esposa em lágrimas.

            Mal pude ouvir a prece que alguns amigos me consagravam, porque, de repente, a onda tumultuária me arrebatou ao círculo mais íntimo.

            Debalde procurei regressar à quadra humilde em que situaram a sombra do que eu fora no mundo... Os visitantes terrestres daquela mansão, pertencente aos supostos finados, traziam consigo imensa turba de almas sofredoras e revoltadas, perfeitamente jungidas a eles mesmos.

            Muitos desses Espíritos, agrilhoados aos nossos companheiros humanos, gritavam ao pé das tumbas contando os crimes ocultos que os haviam arremessado à vala escura da morte, outros traziam nas mãos documentos acusadores, clamando contra a insânia de parentes ou contra a venalidade de tribunais que lhes haviam alterado as disposições e desejos.

            Pais bradavam contra os filhos. Filhos protestavam contra os pais.

            Muitas almas, principalmente, aquelas cujos despojos se localizavam nos túmulos  de alto preço, penetravam a intimidade do sepulcro e, de lá, desferiam gemidos e soluços  aterradores, buscando inutilmente levantar os próprios ossos, no intuito de proclamar aos entes queridos verdade que o tímpano humano detesta ouvir.

            Muita gente desencarnada falava a cerca de títulos e depósitos financeiros perdidos nos bancos, de terras desaproveitadas, de casas esquecidas, de objetos de valor e obras de arte que lhe haviam escapado às mãos, agora vazias e sequiosas de posse material. 

            Mulheres desgrenhadas clamavam vingança, contra homens cruéis, e homens carrancudos e inquietos vociferavam contra mulheres insensatas e delinquentes.

            Talvez porque ainda trouxesse comigo o cheiro do corpo físico, muitos me tinham por vivo ainda na Terra, capaz de auxiliá-los na solução dos problemas que lhes escaldavam a mente, e despejam sobre mim alegações e queixas, libelos e testemunhos.

            Observei que os médicos, os padres e os juízes são as pessoas mais discutidas e criticadas aqui, em razão dos votos e promessas, socorros e testamentos, nos quais nem sempre corresponderam à expectativa dos trespassados.   

            Em muitas ocasiões, ouvi de amigos espíritas a afirmação de que há sempre muitos mortos obsidiando os vivos, mas, registrando biografias e narrações, escutando choro e pragas, tanto quando vendo o retrato real de muitos, creio hoje que há mais vivos flagelando os mortos, almejando-os aos desvarios e paixões da carne, pelo menosprezo com que lhes tratam a memória e pela hipocrisia com que lhes visitam as sepulturas.

            Tamanhos foram meus obstáculos, que não mais consegui rever os familiares naquelas horas solenes para a minha incerteza de recém vindo, e, somente quando os homens e as mulheres, quase todos protocolares e indiferentes, se retiraram, é que as almas terrivelmente atormentadas e infelizes esvaziaram o recinto, deixando na retaguarda tão somente nós outros, os libertos em dificuldade pacífica, e fazendo-me perceber que o tumulto no lar dos mortos era uma simples consequência da perturbação reinante no lar dos vivos.

            Apaziguando o ambiente, o cemitério pareceu-me um ninho claro e acolhedor, em que não faltavam braços amigos, respondendo-me as súplicas, e a cidade, em torno, figurava-se-me, então, vasta necrópole, povoada de mausoléus e de cruzes, nos quais os espíritos encarnados e desencarnados vivem o angustioso drama da morte moral, em pavorosos compromissos da sombra.

            Como se vê, enquanto a Humanidade não se habilitar para o respeito à vida eterna, é muito desagradável embarcar da Terra para o Além, no dia dedicado por ela ao culto dos mortos que lhe são simpáticos e antipáticos.

            Peça a Deus, desse modo, para que você não venha para cá, num dia dois de Novembro. Qualquer outra data pode ser útil e valiosa, desde que se desagarre daí, naturalmente, sem qualquer insulto à Lei. Rogue também ao Senhor que, se possível, possa você viajar ao nosso encontro, num dia nublado e chuvoso, porque, em se tratando de sua paz, quanto mais reduzido o séquito no enterro será melhor.

            E porque o documento não relaciona outros informes, por minha vez termino também aqui, sem qualquer comentário.

Carta de um Morto
Irmão X
por Chico Xavier

Reformador (FEB) Novembro 1955


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