Pesquisar este blog

domingo, 17 de maio de 2015

Espiritismo sem Mescla

Espiritismo
sem mescla

Gilberto Campista Guarino

Reformador (FEB) Outubro 1972

            Repisar pontos básicos de Doutrina - inadmissibilidade de cultos exteriores, reencarnação, etc. - é trabalho que continuará em ritmo imodificável, enquanto soubermos da existência de algum companheiro interessado no burilamento íntimo e disposto a esforços múltiplos na captação da inadiável problemática do Espírito, em nossa época.

            Séculos XIX e XX levaram ao ápice o problema da temporalidade do ser humano, angústia apresentada sob forma de trilogia: Quem sou? De onde venho? Para onde vou?

            Como novo Renascimento, a própria Ciência ativa as pesquisas múltiplas, reconhecidamente impulsionada por novos hálitos, renovação edificante que se impõe como necessidade da própria existência.

            Nas Artes - onde o campo de ação é igualmente amplo - a produção romântica rasga novos véus, trazendo diferentes harmonias e nova concepção de mecânica instrumental. Enquanto Chopin cria o tipo de "ondas de som", Franz Liszt revoluciona a técnica pianística, exigindo dos intérpretes não somente agilidade global, mas também uma inusitada resistência física, deixando transparecer, acima de tudo, a descrição musical, a melodia impressionista, onde a imagem se dilui em um conjunto de percepções sublimes, desvendando horizontes novos no sentido da evolução do próprio Espírito. Na poesia, Vítor Hugo dizia de si, em franco processo de interação social, e aqui no Brasil Cecília Meirelles, já modernamente, captava de modo perfeito a imperiosidade de "vestir o homem novo", asseverando: - "Dos meus retratos rasgados me recomponho ... "

            Mudanças políticas, avanço na Arquitetura, nova concepção do belo (com maiores luzes? .. ), profunda modificação nas ideias, com evidentes repercussões nos usos e costumes, derrogação e revogação de leis, criação de novos textos legislativos, mais lógicos, em sua maioria; surgimento do Direito do Trabalho, produto do esforço de muitos homens... Enfim, um complexo feito de complexos menores, espécies de um gênero ainda mais complexo do que a própria complexidade universal: o homem em franca evolução.

            E após um preâmbulo tão extenso, mas necessário à situação do assunto, como entender a Doutrina Espírita mesclada com os problemas do dia-a-dia? É justamente em virtude disso que surge o erro do espírita insipiente: o fanatismo.

            Baseado em quê, perguntaríamos nós, se pode afirmar que o Espiritismo  pressuponha de nossa parte uma pureza que ainda não possuímos? E, ainda pior, quem pode afirmar, em sã consciência, que o Espiritismo esteja vinculado à necessidade do enclausuramento, sumamente egoístico? Nenhum preceito doutrinário proíbe ao espírita o relacionamento sadio com a sociedade, necessário a nosso próprio equilíbrio e que deve e precisa ser moldado nos padrões da verdadeira evangelização e da lógica real. Os Espíritos superiores nunca nos impuseram macerações e privações, em absoluto condizentes com a grandiosidade da Lei Suprema. Também o Codificador, em seus arrazoados sobre a palavra do Mestre Jesus (in "O Evangelho segundo o Espiritismo", ed. FEB), não prega o isolamento e o cilício. Em suma: a Doutrina - que entrelaça lógica e sentimento, elevados a gradações sublimes - não faz a apologia da cristalização intelectual e do entorpecimento da sensibilidade.

            Do mesmo modo, o verdadeiro Espiritismo - Cristianismo redivivo - não exalta a futilidade, o alheamento das coisas do Alto, situações essas que fustigam a humanidade de hoje. Naturalmente compreendemos, com os Mentores Amigos, serem todos estes acontecimentos necessários à evolução do próprio homem, face à situação a que ele mesmo se lançou no decorrer dos milênios, questões, aliás, que encontramos fartamente elucidadas nas obras da Codificação e em Roustaing.

            Se forcejarmos para ser realmente espíritas, na mais completa e grandiosa acepção do termo, isto é, se "estivermos no mundo sem sermos do mundo", se dele extrairmos a verdadeira torrente de ensinamentos edificantes que nos pode proporcionar, se nele participarmos do bem, procurando esclarecer o mau, lutando para incentivá-lo rumo à elucidação maior, somente assim estaremos sendo verdadeiramente espíritas. Porque a Doutrina, em cujo universo gravitamos - o Espiritismo é por si só um universo inteiro -, não prega o conformismo, no sentido em que o mundo o entende, mas na significação da paciência e da fé raciocinadas.

            E, por ser assim, conforme nos lembra Emmanuel ("Vinha de Luz", págs. 91, ed. FEB) "a árvore da fé viva não cresce no coração miraculosamente", pelo que ela nos reclama esforço, e muito esforço, pois só se estabelece solidamente através da ponderação.

            E assim compreendemos porque, partidários da síntese - posição ideal, segundo os próprios Espíritos superiores -, entendemos que intelectualidade e sentimento podem e devem mesclar-se, gerando a posição integradora exigida pela perfeição.

            Não nos fanatizemos, desprezando o raciocínio com que o Pai de Misericórdia nos brindou, como medida justa e inerente à própria evolução. Saibamos utilizar o livre arbítrio, pedra de toque da Doutrina, recordando sempre que o mau uso das próprias forças impôs-nos a primeira encarnação material: falimos. Mas, a Misericórdia Divina é infinita e, mais de uma vez, novas oportunidades nos têm sido concedidas quotidianamente.

            Lembremo-nos daqueles cientistas e daqueles artistas que viveram intensamente, "estando no mundo sem serem do mundo", contribuindo para o seu progresso, trazendo a Revelação Divina à humanidade inteira. Recordemo-nos do Cristo de Deus, que não se enfurnou egocentricamente na couraça de exacerbada autoproteção, mas que, ao contrário, aproximou-se dos homens, estendendo-lhes as mãos sublimes e saciando lhes a sede de esperança, justiça e amor; o mesmo Cristo que, espontânea e ternamente, foi ao poderoso Publius Lentulus, exemplificando-lhe a verdadeira caridade; o mesmo Jesus-Cristo que suportou o martírio da cruz, as basófias e humilhações dos orgulhosos centuriões, demonstrando que o Cristianismo e, portanto, o Espiritismo é atividade racionalmente fundamentada: é ordem, é amor, é caridade, é luz, é fraternidade, é desinteresse, é desprendimento, é burilamento.

            E, pelo mesmo Cristo, nosso Mestre, que nos ama intensamente, adotemos a atitude de proscrição dos excessos, como nos dizem mentores da Alta Espiritualidade, através da mediunidade de Mme. Collignon, na obra compilada por Roustaing:

            - "Convirjam todos os vossos esforços para libertá-lo (o Espírito), desde a atual existência humana, dos laços que o prendem ao bruto. Nada, porém, de excessos, quer se trate do Espírito, quer do corpo" (in "Os Quatro Evangelhos", vol. 1, pág. 451, edição FEB).

            Em outras palavras: conheçamo-nos, cuidando de marchar em segurança. Não nos fanatizemos. Vivamos a vida com lógica, com amor, com moderação e equilíbrio, lembrando que tudo no mundo deve ser interpretado "em espírito e em verdade".
Este o Espiritismo verdadeiro. O Espiritismo sem mescla.


Nenhum comentário:

Postar um comentário