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segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

6a. AntiCristo senhor do mundo


6a

VI. Efeitos salutares da Reforma. - Sua inferioridade relativamente ao culto sentimental do catolicismo. - Preponderância dos jesuítas nas deliberações do concilio de Trento. - Inácio de Loiola e os extravios da sua missão. - O espirito reacionário e intolerante permanece com o partido politico da Igreja. - Copérnico, Giordano Bruno, Galileu. – Florescimento espiritual da família cristã. - Renascimento expansivo da fé. - Grandes santos. - Missões e catequese. -
- Últimos clarões.

           
            Os efeitos salutares da Reforma não se fizeram apenas sentir na moralização dos costumes, levada ao seio da igreja romana, sobretudo após a reunião do concílio de Trento, nem na atividade mental determinada pela agitação dos assuntos teológicos, que despedaçou os moldes estacionários do dogmatismo em que se imobilizara o pensamento ocidental, nem ainda no inestimável benefício de por diretamente o povo em contato com os ensinamentos do Evangelho, mas se exprimiram por um apreciável desenvolvimento intelectual, graças à difusão da instrução pública, tornada indispensável ao estudo e conhecimento pessoal das sagradas letras.

            Na Suíça, com efeito, além de melhorar os costumes, dirigindo-se mais ao povo que propriamente ao clero, o movimento reformista vulgarizou profusamente a instrução e, com ela, difundiu preceitos morais, que são a base para a formação do caráter no indivíduo. "Estabeleceram-se muitas escolas elementares, e a nação, que havia sido até ali exclusivamente caçadora e guerreira, aplicou-se aos estudos."

            Esses efeitos se acentuaram no decorrer do tempo. E, assim que, ao fim de séculos e, mesmo numa época vizinha aos nossos dias, os cantões suíços reformados continuavam a apresentar visível contraste com os católicos, por um espírito de iniciativa mais acentuado e pelo adiantamento material e intelectual adquirido, enquanto os últimos, privados de instrução no mesmo grau, pelo menos com idêntica amplitude, permaneciam retardatários, acusam notável percentagem de analfabetos. Na Alemanha, o fenômeno da alfabetização geral, que veio a reduzir mais tarde a uma cifra quase nula o número dos iletrados e foi o ponto de partida de sua prodigiosa cultura em todos os ramos dos conhecimentos humanos, não pode ser dissociado da preponderância exercida pela sua formação e pela sua educação religiosas.

            O mesmo pode dizer-se não tanto da raça anglo-saxônica, como particularmente do núcleo que, fugindo às perseguições sectárias e fixando-se em o novo continente, veio a constituir o povo norte-americano, rival, em pouco mais de um século, da nação germânica, assim na quase total supressão do analfabetismo, como no vertiginoso desenvolvimento de suas atividades econômicas, industriais e científicas.

            Mas foi principalmente na esfera dos costumes religiosos, restabelecendo a tradição dos patriarcas e dos apóstolos, que não consideravam incompatíveis as funções eclesiásticas e o matrimônio, reconciliando, portanto, como o dissemos, aquelas funções com os nobilitantes encargos da família honestamente constituída e, desse modo, abolindo o celibato obrigatório instituído pela igreja - fonte de tantos secretos desregramentos e escandalosas uniões ilícitas - que a Reforma produziu os mais salutares e moralizadores efeitos.

            Dirigindo-se contudo mais à inteligência e à razão que ao sentimento e cingindo-se antes literalmente aos imperativos preceitos do mosaísmo que às misericordiosas e persuasivas doutrinas do Evangelho, veio, com os seus dogmas da justificação exclusiva pela fé e, sobretudo, da predestinação e da graça, de que resulta o aniquilamento do livre arbítrio humano e torna ineficazes as boas obras, a incutir em seus adeptos essa indiferença, pior ainda, essa implacável e egoística secura de coração que, não excluindo embora a retidão de caráter, que é o recomendável apanágio do homem de bem - característico dos pastores como, em geral, do rebanho protestante - constitui, entretanto, uma flagrante negação do que de mais sedutor se encontra no Cristianismo: a piedade e o amor ou, em suas mais altas e radiosas expressões, a Caridade.

            Neste sentido a igreja católica - falamos do espírito dominante na família cristã e não da interesseira influência do partido político que a explora - se mostrou sempre mais fiel às inspirações da indulgência, consubstanciada nas lições e nos exemplos do Senhor Jesus. Mesmo depois que as concepções teológicas, a instituição dos dogmas, entre os quais o da odiosa condenação aos suplícios eternos, e a adoção de um culto paganizado, porque duplicado de pomposo ritual, vieram substituir as puras doutrinas evangélicas e alterar a singeleza das primitivas práticas, o que na igreja subsistiu do pensamento cristão bastou para entreter nas almas a ternura dos sentimentos fraternos, expressos em tantas obras de assistência e de solidariedade humana.

            Enquanto a Reforma, proscrevendo rigidamente a doutrina das indulgências e a invocação dos santos, de alguma sorte isolava os homens neste mundo, colocando-os exclusivamente à mercê das inflexíveis injunções da Lei, para alcançar a salvação, a igreja, tendo suprimido a comunhão ostensiva com o mundo espiritual, praticada pelas primeiras gerações cristãs, como o demonstraremos oportunamente, mas que viera a tornar-se uma fonte de abusos e superstições, instituiu em seu lugar o culto dos santos, por cuja intercessão podem os pecadores obter misericórdia, com isso mantendo por uma outra forma aquela comunhão, graças à qual já se não sente o homem, na sua ínfima pequenez, tão distanciado da grandeza infinita do Criador e pode com Ele corresponder-se mediante aquela compassiva escala, desdobrada entre a terra e o céu.

            Mais, todavia, que o dos santos, o culto ela Virgem Maria constituiu sem dúvida e tem, através os séculos, constituído uma fonte não somente de inexauríveis consolações, mas de aperfeiçoamento e exaltação dos sentimentos humanos, porque, como o assinala o historiador, ele que nos temos socorrido, em termos calorosos, que fazemos nossos:

            "O nestorianismo e o concílio que o condenou são memoráveis especialmente porque foram causa do desenvolvimento que tomou o culto de Maria. Quando os hereges tentaram derriba-la do seu trono celeste, os católicos redobraram de veneração por ela, e muitos templos se converteram em igrejas consagradas a Maria. E assim começou a generalizar-se esse culto simpático, pelo qual o cristão adora a mãe de Jesus, presta homenagem às virtudes da mulher e dá expansão às ternuras desabrochadas em sua alma pelos carinhos maternos, pelo amor da esposa, pelo suave prestígio dos encantos femininos. Maria é uma das mais formosas criações elo Cristianismo e tem sido porventura uma das suas maiores seduções. Fala aos sentimentos mais essenciais da natureza humana e, por isso, na antiguidade auxiliou a Igreja a acabar de converter as gentilidades, e nos tempos modernos inspira as devoções mais sinceras e ardentes que ainda amparam o catolicismo."

            É verdade que a igreja, deificando o Cristo e, portanto, colocando Maria, como Mãe de Deus, acima do próprio Criador, veio a tornar, de certo modo, suspeito aos olhos dos puros teístas, sobretudo depois que o adiantamento dos conhecimentos astronômicos tanto contribuiu para modificar o conceito interpretativo da divindade de Jesus, tornar suspeito - dizemos - um culto que, radicado nos mais nobres impulsos do sentimento humano, foi por ela mesma conduzido aos exageros do que se denominou por fim "a Mariolatria", em detrimento da adoração suprema devida ao supremo Autor de todo o Universo e de todas as criaturas. De tal modo, nessa igreja, vigiada de perto pelo AntiCristo, as melhores práticas degeneram em abuso e o próprio bem, às vezes, se converte em mal.

            O inverso também, não raro, se observa, consoante os inescrutáveis desígnios da Divina Providência. A admissão, por exemplo, das imagens, generalizada e, por último, perpetuada, mas que fora objeto de impugnação e controvérsias, durante um século, em vários concílios, como a adoção de outros símbolos materiais, a introdução, nas cerimônias do culto, de certos acessórios, como a música e o incenso, do mesmo modo que o uso dos sinos, tudo em suma que lisonjeia os sentidos e constituiu, da parte da igreja, uma deturpação materializadora da espiritualidade característica do Cristianismo em suas primitivas formas, não deixou contudo de atrair para o catolicismo grande número de almas, imperfeitamente evoluídas, e contribuiu para conservar em seu seio muitas outras cuja mente, necessitada ainda de representações objetivas, seria porventura inacessível a formas religiosas de requintada espiritualidade.

            Não há dúvida que desse atraso mental cabe principalmente a culpa à própria igreja, desde que, renunciando aos superiores métodos persuasivos da conversão pela fé e os exemplos vivos da caridade, e assim se divorciando das instruções e do pensamento do Divino Mestre, entrou a substituir no ânimo entibiado dos seus ministros o essencial pelo acessório e a fazer desse acessório, cuja transitoriedade apenas seria admissível, o instrumento permanente do seu apostolado. Esquecida de que o Cristianismo é uma doutrina essencialmente dinâmica, destinada a caminhar na vanguarda do progresso humano, como agente de todas as suas transformações para melhor, e não um sistema religioso de acomodações retardatárias, a tal ponto consentiu no estacionamento dos seus métodos educativos e das suas práticas que deixou converter-se numa necessidade o que devera ser contido nos limites apenas de uma condescendência transitória. É por isso que, durante o movimento reformista na Suíça, "quando Zwinglio, Engelhard e Leão Judas se puseram a declamar contra as imagens, manifestou-se oposição popular" e o seu uso não foi abolido senão depois de vivas controvérsias. De tal modo se haviam os crentes identificado, ao fim de quase dez séculos de tolerância, com a integração da idolatria em seus hábitos de religiosidade.

            Como quer que seja e para não recusarmos o testemunho de nossa imparcialidade ao que pode considerar-se uma inevitável contingência dos tempos e da situação peculiar de certos espíritos, conviremos em que os símbolos materiais teriam contribuído para atrair ao seio da igreja povos incultos e grosseiros como os bárbaros do norte, ao termo de sua invasão no ocidente, e mais tarde as populações selvagens da África e da América, substituindo nestas os objetos do culto fetichista por outras expressões de natureza semelhante, mas de significação mais elevada.

            O grande mal que debilitava a igreja, ameaçando de irremediável colapso a sua influência espiritual, na época a que nos reportamos, não era tanto o se haver obstinado na conservação de práticas cultuais materializadas, senão, em seus efeitos dissolventes, os abusos extorsivos da cúria e os exemplos desmoralizadores com que o clero, em seus desregramentos, escandalizava o povo, abalando, quase destruindo os estímulos da fé, que havia geralmente perdido e lhe cumpria, entretanto, alimentar no espírito das multidões.

            A esses males viscerais é que urgia serem opostos eficazes e prontos remédios, reclamados pelo próprio instinto de conservação e tornados imperiosos pelo movimento revolucionário e oportuno da Reforma. Se, além disso, não pesasse sobre a igreja a ação obnubiladora do AntiCristo e aos seus dirigentes fosse, de outro modo, permitida uma clara visão das necessidades do futuro, teriam eles compreendido que uma série de medidas, no sentido liberal, se impunha igualmente em seus ensinos dogmáticos, substituindo as concepções terroristas de uma teologia, que fora porventura adequada ao período de formação das sociedades ocidentais, por novas concepções em harmonia com o adiantamento das ciências e, portanto, com as tendências racionalistas dos espíritos cultos, que já se não poderiam satisfazer com os velhos moldes de uma teodiceia obsoleta.

            O impulso de renovação introduzido pela Renascença na literatura e nas artes devia forçosamente propagar-se ao domínio religioso. A ânsia de liberdade, que fora dos mais poderosos motivos da extensa repercussão adquirida pela Reforma, a rapidez com que daí  em diante se efetuaria o progresso intelectual, graças à amplitude na circulação das ideias promovida pela imprensa, tudo isso estava a indicar que, ao lado das medidas moralizadoras e disciplinares reclamadas para reabilitação do clero e sua reintegração na estima e no conceito populares uma reforma igualmente se impunha nas concepções doutrinárias da igreja, pondo-as em concordância com os ensinamentos do Evangelho e, assim, com a Justiça, a Bondade e a Sabedoria de Deus, em torno das quais giram todos eles. E não apenas em suas concepções teóricas, senão que a primeira medida que se impunha era a abolição do sinistro aparelho de torturas - monstruoso testemunho negativo do espírito do Cristianismo - que era a Inquisição.

            Por essa e não por outra forma, satisfazendo, além das modestas necessidades da crença popular, as legítimas aspirações das inteligências esclarecidas e pondo termo, igualmente, ao odioso contraste daquela nefanda instituição com as misericordiosas doutrinas do Redentor e não exterminador dos homens, é que a igreja lograria sobrepujar a profunda e extensa crise que a atribulava, restituindo-lhe, com a missão apostólica e tutelar, de que se vinha, há séculos, divorciando, a quase perdida influência espiritual sobre a cristandade e o mundo, em vésperas de grandes transformações.


            Vejamos até que ponto lhe consentiu, ou se porventura o consentiu, a pressão escravizadora do AntiCristo por em prática esse programa libertador. 

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