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domingo, 7 de dezembro de 2014

5b AntiCristo senhor do mundo


5b

            A história da Igreja cristã, nestes dezenove séculos decorridos, tem sido uma flagrante representação objetiva da alegoria expressa na parábola do joio entre o trigo, com exclusão apenas do desfecho, que os sinais do tempo presente anunciam aproximar-se, mas cuja integral consumação à exiguidade da visão humana ainda se afigura vir distante.

            Os que se preocupam, moralistas e pensadores, com os alarmantes sintomas de dissolução moral, que é a característica de nossos dias, consequente da irreligiosidade que por toda parte predomina, gerando o excessivo culto da matéria e a vertiginosa corrida a todos os seus gozos, reconhecem a necessidade de uma renovação religiosa, que restitua aos homens o sentimento de seus deveres e de suas responsabilidades, inerente à crença em seus destinos imortais. Alguns., ou seja obnubilados pelo espírito de sectarismo, ou por deficiência de apreciação, que lhes não consente discernir a verdadeira significação da sobrevivência da igreja romana a tantas vicissitudes seculares, entendem que a volta dos desertores do rebanho católico ao seu grêmio, de par com a conversão, dos indiferentes ao seu credo, resolveria o angustioso problema contemporâneo. Outros, ponderando unicamente os graves erros durante séculos acumulados por essa igreja, o seu espírito reacionário e intolerante, reconhecem-na falida em sua missão espiritual e só têm para ela palavras de condenação.

            No alvitre ilusório dos primeiros, como no radicalismo, condenatório dos segundos, há - repetimos – deficiência de apreciação. Para julgarmos com justiça a igreja, no curso de suas realizações e de suas graves delinquências, através a história, cumpre discernir as duas modalidades que nela se acham nitidamente representadas c se não devem confundir num mesmo julgamento. Uma é o partido politico, formada pelo seu corpo administrativo, a outra a família cristã propriamente dita, subordinada contudo à direção daquele.

            O primeiro, chefiado pelo papa e composto não somente do alto clero que constitui a corte pontifícia, mas de todo o exército eclesiástico, disciplinado e obediente, é o responsável pelos abusos, prevaricações e atentados contra a doutrina do Senhor, que teria definitivamente impopularizado, causando a sua ruína irreparável e fazendo soçobrar a própria igreja, se não tivesse esta sido, em todos os tempos, sustentada pelos sentimentos religiosos da família cristã.

            Sobre esta, de que - apressemo-nos a acrescentar - têm feito no passado e ainda hoje fazem parte os prelados de todas as categorias, verdadeiros crentes, portadores das virtudes cardiais - humildade, fé e caridade - é que o Espirito do Senhor se tem difundido, mantendo a estabilidade da sua Igreja, composta não apenas - cumpre ainda advertir - de cristãos professos, mas de todos os homens de boa vontade que, mesmo não pertencendo a nenhuma confissão religiosa, dotados, porém, de coração puro e consciência reta, praticam por toda parte o bem, na ordem moral, sem cogitar de retribuição. Ainda que se nos afigure limitadíssimo o seu número, esses pertencem de facto à Igreja invisível do Cristo, cujos membros se distinguem pelas boas obras e não por quaisquer insígnias exteriores.

            O partido politico, ao contrário, que tem o seu quartel general no Vaticano e representação diplomática em todos os países, preocupa-se antes de tudo com o domínio temporal, só pela violência se deixou despojar dos Estados pontifícios, sem de todo renunciar à sua restituição - teremos ocasião de ainda fazer a isso nova referência - corteja a força e foi, em todos os tempos, aliado dos poderosos, em detrimento dos humildes. É, numa palavra, e não parece resolvido a deixar de ser, uma potência exclusivamente mundana, fazendo da religião, que explora e em cujos dogmas finge hipocritamente acreditar, apenas o pretexto para ostentação do seu poderio e satisfação de suas insaciáveis ambições. O "tesouro de S. Pedro" - que de resto "não possuía ouro nem prata" - é o alicerce da sua grandeza, embora pretenda, para iludir o mundo, ser o depositário das "chaves elo reino dos céus" e o representante de Deus, com poderes para absolver e condenar os homens.

            Enquanto a ideia cristã é imperecível, vive no coração dos crentes, como chama divina alimentada pelo próprio Cristo, e há de regenerar as sociedades humanas, sob a modalidade renovada de que oportunamente nos ocuparemos, o partido politico, ou a igreja de Roma - verdadeira criação do AntiCristo, que a tem subjugada ao seu império - encontra-se em face do seguinte dilema, cujo imperativo só a obstinada cegueira dos seus orientadores não permitirá reconhecer: ou, para salvar-se do naufrágio e sobreviver, terá que radicalmente modificar-se, voltando á edificante simplicidade e às austeras virtudes dos primeiros tempos apostólicos, ou terá que desaparecer, em época talvez distante, mas inevitável, arrebatada no tufão demolidor que, desencadeado na esfera político-social - e os seus rumores crescem dia a dia - terminará por derrubar os derradeiros tronos, que a esse tempo existirem sobre a terra.

            Ora, essa igreja ou, indiferentemente, esse partido político, adversário natural do Cristianismo, de que é a antítese, não parece resolvido a aceitar melhor no futuro; do que o fez no passado, as suasórias lições que o Senhor; em sua longanimidade, lhe tem enviado.

            Com o apostolado franciscano, que devia ser para essa igreja, como o foi para a cristandade, uma fonte de regeneração, já vimos de que modo se conduziu ela. Depois de ter apunhalado de desgostos o patriarca, deturpando a sua obra e fundindo-a por último no mesmo regime de quase completa esterilidade das antigas ordens, limitou-se, como. hipócrita compensação, a canoniza-lo e erigir-lhe, com desrespeito à humildade de sua vida, uma suntuosa basílica.

            Aniquilada aquela generosa iniciativa, recrudesceu a dissolução de costumes, e a decadência do pontificado, que se vinha acentuando desde o começo do século XIV, veio a atingir o seu período culminante com o grande cisma do ocidente, que se declarou, como vimos, em 1378.

            O concílio de Constança, convocado em 1414 não somente para pôr termo ao cisma e restabelecer a autoridade pontifícia, mas para tomar medidas radicais que restaurassem a disciplina eclesiástica e pusesse cobro aos desregramentos do clero, foi, quatro anos depois - em abril de 1418 - encerrado pelo papa Martinho V, eleito depois da sua abertura, sem terem sido feitas as reformas reclamadas.

            Ao contrário disso, porque João Huss, que se fizera intérprete dos clamores populares, prosseguisse em sua moralizadora propaganda, o escolheu para vítima de sua criminosa incoerência e, como precedentemente o recordamos, tornou-se cúmplice da sua execução. Porque o movimento reformador, segundo o atesta a historia, "tinha-se manifestado de três modos: dentro da própria igreja, nos conselhos dos príncipes seculares e no seio do povo. Os reformadores mitrados, entretanto, e o reformador secular, Segismundo, deram-se as mãos para condenar e supliciar o revolucionário popular".

            Preso, por ordem do papa João XXIII, que a esse tempo (1415) exercia o pontificado e contra quem, de resto, o concílio formulara "acusações porventura mais graves e afrontosas que todos os vitupérios de João Huss", foi este, depois de uma simulada proteção do imperador, entregue ao braço secular, perecendo intrepidamente na fogueira. A mesma sorte coube, pouco depois, ao seu discípulo Jerônimo de Praga, com quem ocorreu o conhecido incidente do camponês que, no momento do suplício, chegava, com fanático zelo, mais lenha à fogueira, provocando esta serena exclamação do condenado: "Santa simplicidade! Peca mil vezes mais quem dela abusa!"

            Encerrado, como dissemos, o concílio em 1418, sem terem sido tomadas as medidas reclamadas pela situação anárquica da igreja, o papa Martinho V convocou outro para Basiléia, morrendo, porém, logo depois. O concílio foi aberto em 23 de julho de 1431 por ordem do papa Eugenio IV, que pretendia "extirpar as heresias, estabelecer perpetua paz entre as nações cristãs, pôr termo ao secular cisma dos gregos e reformar a igreja". Assustado, porém, com a excessiva atividade dos membros do concílio, apressou-se em adia-lo. A assembleia contudo prosseguiu em seus trabalhos, citou Eugenio IV para comparecer, acusou-o de desobediência e declarou-se superior a ele.

            Nesse ambiente agitado foram votadas várias reformas moralizadoras, mas o dissídio prosseguiu, agravado por novos incidentes, que omitimos, só vindo a terminar o grande cisma do ocidente em 1449 e restabelecer-se a paz na igreja, com a ratificação, pelo papa Nicolau V, da concordata firmada por Felix V com Frederico III e mediante proposta deste. Paz, em verdade, transitória, que melhor se denominaria trégua, pois que, não tendo sido postas em prática as medidas radicais tendentes à moralização dos costumes eclesiásticos, prosseguiram os desregramentos, até que no começo do século XVI, isto é, aos albores já da Renascença, estalou a grande crise.


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