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sexta-feira, 21 de novembro de 2014

4d. AntiCristo senhor domundo



 4d

            Em meio ao tumulto das armas, ao aviltamento dos costumes e ao crepitar das fogueiras, com que a "santa" Inquisição insultou as pacíficas tradições do Cristianismo, naquele tormentoso período, em que muitos se detêm a admirar a construção, indubitavelmente maravilhosa, das catedrais, como expressão do pensamento religioso insculpido em arabescos de pedra, o que, a nosso ver, sobressai e permanecerá como incomparáveis contribuições para a obra da civilização verdadeiramente cristã, são: a Imitação de Cristo e o apostolado de Francisco de Assis.

            Escrita no silencio do claustro por um frade, cujo nome se conservou ignorado, pois que ele mesmo se absteve, humilde e cuidadosamente, de o lançar no manuscrito, encontrado só depois de sua morte, a Imitação de Cristo, pela singeleza do estilo em que está vasada e que tanto, ainda nisso, a aproxima do Evangelho, tornando-a a muitos respeitos o seu complemento natural, mas sobretudo pelos lampejos de inspiração divina que nela perpassam não obstante refletir frequentes vezes o ambiente sombrio da época e do meio claustral, constitui um brado exortativo a todas as consciências, um convite misericordioso do Senhor a todas as almas famintas de libertação e de socorro.

            Nesse verdadeiro manual da perfeição cristã, o seu iluminado autor, se algumas vezes flagela, com amargura espiritual, que não com virulência, os desregramentos do seu tempo, em frases como esta: "Ah! Se tanto zelo empregassem em extirpar os vícios e plantar virtudes, como em ventilar questões, tantos escândalos não haveria entre o povo, nem tanta relaxação nos claustros!" - aplica-se de preferência a atrair os homens para as  excelsitudes da vida interior, levantando-lhes as aspirações para as realidades eternas com desprezo das coisas transitórias. Identificado com o pensamento do Mestre, a tal ponto que chega a dele fazer-se, iterativamente, a expressão pessoal, autorizada e viva, quando exorta: "Filho, do céu baixei por tua salvação; assumi tuas misérias, não obrigado, só por amor: para ensinar-te a paciência e a sofreres sem revolta as presentes misérias", ora entremostra os arcanos da Sabedoria pela iluminação interior, mediante uma vida imaculada: "Bem aventurado aquele a quem a Verdade ensina, não por figuras e vozes que passam, mas por si mesma e como em si é," ora, penetrado do sentimento de renúncia, em que culmina a iniciação do crente, e advertido de que o padecer dores no corpo ou no espírito - inseparável contingência de toda criatura humana - representa lei inevitável numa esfera de aperfeiçoamento como a Terra, traça aquele magistral capítulo, "Do real caminho da Santa Cruz", em que faz eloquente apologia do sofrimento e acena a todos, que sob ele vergam, com as radiosas compensações que o futuro lhes reserva.

            "Diante foi o Senhor com a cruz às costas - diz ele - e por teu amor na cruz morreu, para que tu também leves a tua cruz e aspires a morrer na cruz; porquanto, se com Ele morreres, com Ele também viverás, e se fores seu companheiro na pena, também o serás na glória".

            Pois bem, esse livro, que tem atravessado os séculos e conta maior número de edições e de traduções em todas as línguas que outro qualquer até hoje publicado, esse livro, que tem derramado no mundo tantas consolações e dissipado tantas perplexidades, pois que em qualquer página que, ao acaso, seja aberto por uma criatura aflita, lhe oferecerá sempre uma advertência, um oportuno esclarecimento e um conforto, esse livro - repetimos - dir-se-ia que escrito pelo Senhor, servindo-se da mão e do cérebro de um de seus mais humildes, estudiosos e fieis discípulos, parece não ter exercido a mínima influência nos ministros da igreja, aos quais, em grande parte, era evidentemente dirigido, prosseguindo eles nos seus desvarios, sempre obcecados pelas ideias de grandeza e ambições materiais, escravizados que se conservaram sempre às tenebrosas sugestões do AntiCristo.

            Quando muito, o apreço que teriam ligado àquele admirável conjunto de ensinamentos da mais pura moral cristã, parece ter consistido em introduzir lhe, com profanadora mão, alguns enxertos e acréscimos, sobretudo no derradeiro, dos quatro "livros", que remata o volume, com a visível intenção de o acomodar às práticas devocionais, em que o clero interesseiro fez timbre em conservar de preferência obediente o rebanho católico.

            Um exame atento daquela obra divinamente inspirada, em cujo "Livro primeiro" são dados "Avisos para a vida espiritual", no segundo, "Exortações à vida interior", cujo "Livro terceiro" trata "Da interna consolação" e o quarto e último "Do S.S. Sacramento", revela, com efeito, nalguns lugares, em que a pureza do estilo se patenteia adulterada, e sobretudo no derradeiro "livro" uma preocupação exclusivista de atrair os crentes menos para a identificação com o pensamento evangélico, do que para a observância de práticas exteriores, cuja inutilidade, entretanto, o verdadeiro autor da Imitação de Cristo põe de relevo em mais de uma passagem dos anteriores capítulos de sua indubitável redação. Compreende-se que, se um instintivo respeito coagiu os representantes da igreja a manter intactos os grandes ensinamentos espirituais do iluminado autor, embora considerando-os porventura unicamente aproveitáveis para "pessoas crédulas", nenhum inconveniente, a seu ver, resultaria de adaptarem por último a divina oferenda aos interesses particularistas da igreja.

            Damos nisto uma impressão pessoal, que a nossa consciência e sinceridade nos impunham exprimir, submetendo-a contudo ao critério dos estudiosos imparciais que, como nós, busquem a verdade sem preocupações e exclusivismos apriorísticos, impressão que a histeria da igreja e sua contumaz infidelidade ao pensamento do Mestre e aos seus ensinos autoriza, sem temor de gratuitas suspeitas.

            De todo modo, o que os fatos demonstram é que, a não ser a criminosa deturpação de que as apontadas circunstâncias denunciam ter sido objeto a Imitação de Cristo, nenhum outro apreço mereceu da igreja o divino convite à reconciliação com o espírito do Cristianismo, que suas páginas imortais, de fato, encerram.



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