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sexta-feira, 21 de novembro de 2014

4a. AntiCristo senhor do mundo

4a


IV.       Engrandecimento material da Igreja, declínio progressivo do ideal cristão. - Formação do Estado Pontifício, como réplica à palavra do Cristo:
"Meu reino não é deste mundo". - Transigências e antíteses. –
Restauração parcial da Igreja Cristã. - Francisco de Assis.

            Se o Senhor Jesus se abstivera, intencionalmente, de reduzir a escrito os seus ensinos, preferindo confia-los à segurança dos corações fieis de seus discípulos, que os viveriam na eloquência dos exemplos e, por Ele do Alto sustentados, os transmitiriam à história, de par com a narrativa dos martírios infligidos à cadeia de seus heroicos sucessores, obscuros ou ilustres, muito menos se preocupou de fundar uma religião, no sentido ritualístico e de práticas devocionais, comumente ligado a essa palavra. Viera, sim, fundar a religião do sentimento, ou - no dizer de um inspirado autor, egresso das hostes reacionárias da igreja romana para as fileiras do moderno espiritualismo (1) - "a magnífica sociedade das almas, que se chama o reino de Deus".

            (1) Padre V. Marchal, “O Espírito Consolador”, cap. , 23, "A Grande Vítima".

            Nas instruções dadas aos seus apóstolos, como nas lições transmitidas diretamente ao povo, insistira sempre na supremacia das boas obras e na inutilidade dos gestos, atitudes e observâncias exteriores, favoráveis ao desenvolvimento da hipocrisia. Portador da Verdade, e Ele próprio personificação viva da Verdade, que aprendera do Pai, sabendo quanto a pureza e elevação dos sentimentos e a retidão dos atos não somente dignificam os que os praticam, mas constituem os únicos elementos de edificação para os que os observam e são, por natureza, comunicativos, o seu cuidado era fazer de seus discípulos, como em geral de todos os que se convertessem a sua Palavra, homens verdadeiros, suficientemente espirituais para incutirem nos outros homens a certeza da vida imortal, a cujas esplendidas realidades interiores devem ser imolados os enganos e ilusões da vida material, exterior e transitória.

            E, porque não menos sabia que, entre os grilhões que escravizam o espírito à terra e o condenam à amargurada repetição de estágios nela expiatórios, divorciando-o do ideal divino de perfeição, que é seu destino, nenhum sobreleva o funesto apego aos bens que a riqueza proporciona, advertiu os seus discípulos e o povo, reunidos no sopé do Monte, em que proferiu o memorável Sermão, começando das bem aventuranças e rematando com os mais sábios ensinamentos aplicáveis às diferentes situações da vida:

            "Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer um e amar o outro, ou há de acomodar-se a este e desprezar aquele. Não podeis servir a Deus e as riquezas."

            Ora, no duplo sentido a que nos reportamos - instituição de ritos e pompas externas e posse de bens materiais - os depositários do divino legado, que assumiram a direção da igreja, não cessaram de contradizer, com sua conduta, os exemplos e os ensinos do Mestre, desse modo atraiçoando o seu mandato. Não somente se afastaram das primitivas práticas adotadas nas comunidades cristãs, singelamente adstritas à leitura e comentários dos textos evangélicos, sob as inspirações do Alto, substituindo-os pouco a pouco por cerimônias emblemáticas, representativas da Ceia, e por uma complicada liturgia, inacessível ao entendimento popular, mas, desde que, organizada, a igreja nada mais teve que temer de seus perseguidores, graças à proteção de Constantino, entraram a revestir-se de um fausto incompatível com a espiritualidade de suas funções.

            "Uma vez triunfante - é oportuno recordarmos, com o historiador de cujo testemunho nos temos socorrido - protegida pelo império, enriquecida pela generosidade dos fieis, certa de viver e dominar, a Igreja começou a rodear-se de pompa e cobrir os seus ministros de seda e ouro". E comenta ele: "Por certo que o humilde Jesus nunca imaginou ver os seus discípulos trajarem como os grandes da terra e dourarem os altares, onde se arvorava o tosco lenho da Cruz. Todavia, acrescenta, apreciando o fato à luz de um critério nitidamente profano força é reconhecer que, desde que a Igreja se fizera instituição para presidir aos destinos da sociedade por meio de sua influência nos espíritos e nos corações, corria-lhe a necessidade de rodear-se do esplendor, que os preconceitos do vulgo consideram distintivo da grandeza e da dignidade, e de atuar também sobre os sentidos da multidão, acostumada a reconhecer a majestade do poder quase unicamente pela magnificência de que ele se rodeava".

            Essa foi sem duvida, exteriormente impressionista, a intenção dos dirigentes da igreja - e é isso que até certo ponto os absolve do deslize - ao inflectirem no resvaladouro das acomodações aos "preconceitos do vulgo", pois não se os poderia, com justiça, increpar de tais condescendências, no deliberado propósito de desservir a doutrina do Senhor, para a qual só os deveriam induzir motivos de atrair maior número de adeptos.

            "Não se lhe censure, pois - acrescenta o historiador - o ter renunciado à pobreza dos primeiros séculos, mas arguam-se tão somente os seus chefes e ministros, que fizeram fim do que só deveria ser meio, converteram o esplendor do culto em regalo e satisfação da própria vaidade e, para sustentarem o luxo dos altares ou dos seus serventuários, venderam as concessões espirituais ou espoliaram os fieis".

            Era contudo inevitável que assim viesse a suceder, uma vez afrouxada a vigilância que reclama incessante, contra as tentações do inimigo, a investidura espiritual. Cometido, o erro, mesmo com a intenção de temporário, por condescendência e com a reserva mental de ulterior retrocessão, engendra sempre novos erros, que se vão agravando, até degenerar em inveterado e irremediável abuso. O maior perigo, em casos tais, consiste em ser aberto o precedente, que é uma espécie de pacto, inadvertidamente feito, com o inimigo. Foi esse perigo que não souberam ver os ministros da igreja, responsáveis pela sua direção. Esqueceram-se de que a doutrina com que, para sua redenção, viera Jesus felicitar o mundo, não se destinava a adaptar-se às conveniências do século e aos preconceitos populares, mas a estabelecer um novo padrão de vida moral, para o individuo como para a
coletividade, vida interior, com exclusão de todo aparato exterior, devendo, portanto, ela, a doutrina, ser conservada em toda a sua pureza exclusiva e em toda a sua espiritualidade original.
           
            Ou ter-se-ia o Cristo enganado quanto à oportunidade histórica de sua descida a este mundo, ensinando prematuramente uma doutrina que o mundo não estaria apto a receber, sendo então necessário revesti-la de formas que a tornassem, na prática, assimilável pelos homens. Nascendo e vivendo, propositadamente, na pobreza e consentindo, por último, em ser consumado na ignominia da crucificação, teria oferecido um modelo de vida e hábitos inimitável pelos seus continuadores e discípulos ? - Tanto assim não foi - à parte a irreverência que envolve a só hipótese de semelhante equívoco - que séculos mais tarde, como o veremos adiante, foi precisamente o retorno àquelas formas de humildade e de renúncia pelo mais fascinante de todos os imitadores de Jesus que salvou a igreja numa de suas mais temerosas crises.

            O Cristo não se equivocou nem poderia ter-se equivocado na escolha do momento de sua descida á terra, trazendo-lhe os indestrutíveis elementos de sua regeneração. Mas, também, não ignorava, em sua divina presciência, que, exposta às agressões do Espírito das trevas e em contato com a fragilidade dos que, no futuro, tomariam o encargo de seus depositários e propagadores, a sua doutrina de amor e imortalidade seria deturpada por adaptações parasitárias e materializadoras. Não foi sempre essa, de resto, a sorte de todas as revelações trazidas ao mundo por grandes iniciados? Mosaísmo, Bramanismo, Budismo, não começaram todos por um código de preceitos morais, austeramente pregado pelos seus instituidores, para degenerarem ulteriormente em práticas ritualísticas, a pretexto de adaptação à mente popular, terminando a casta sacerdotal, que no seio de cada uma dessas religiões veio a formar-se, por explorar a credulidade dos fieis e enriquecer-se a custa de sua generosidade.

            O Cristianismo não podia escapar a essa fatalidade, indubitavelmente prevista pelo seu divino Instituidor. Fatalidade inevitável, enquanto este mundo continuar a ser o império do AntiCristo, que exercita o seu domínio e o exercitará sobre a mente e o coração da imensa família humana, até que esta, pelo incoercível poder da evolução, que está nos desígnios de Deus, venha integralmente a converter-se, no transcurso dos séculos, à lei do Cristo, que o é de amor e de libertação.

            Enquanto se não efetuar essa conversão - e só o poderá ser individual, progressiva e, por assim dizer, intermitente, isto é, assinalada por ascensões, quedas e reabilitações - teremos de verificar na história das religiões e, particularmente, na conduta dos seus ministros e representantes, a incidência da dupla corrente de ação espiritual: a dos mensageiros do Senhor, operando no sentido de atrair os homens à comunhão divina, pela única pureza dos sentimentos e a retidão dos atos, a do "príncipe deste mundo", pela pressão de seus tenebrosos agentes, procurando induzir em erro os descuidosos, estimulando-lhes as fraquezas e sugerindo toda sorte de pretextos para a deturpação dos divinos ensinamentos.


            Nesse conflito, que se vem perpetuando através os séculos, os triunfos e revezes de um lado e outro se sucedem. Que a conversão final do próprio Tentador e seus infortunados seguidores ainda parece vir distante. Mas virá. 

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