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terça-feira, 4 de novembro de 2014

2c. AntiCristo senhor do mundo



AntiCristo Senhor do Mundo
por Leopoldo Cirne
Edição  – 1935

2c

            Encontra-se, com efeito, em a narrativa dos Atos dos Apóstolos, logo no capitulo II, esta significativa passagem:

            "E todos os que criam estavam unidos, e tudo o que cada um tinha era possuído em comum por todos. Vendiam as suas propriedades e os seus bens e os distribuíam por todos, segundo a necessidade que cada um tinha."

            Mais adiante (cap. IV) insiste o narrador:

            "E da multidão dos que criam o coração era um e a alma uma: e nenhum dizia ser sua coisa alguma daquelas que possuía, mas tudo entre eles era comum. E os apóstolos, com grande valor, davam testemunho da ressurreição de Jesus Cristo, nosso Senhor, e havia muita graça em todos eles. E não havia nenhum necessitado entre eles; porque todos quantos eram possuidores de terras ou de casas, vendendo-as, traziam o preço do que vendiam e o depositavam aos pés dos apóstolos; e repartia-se a cada um conforme a sua necessidade."

            Haviam desse modo criado um núcleo de comunismo, social e prático, fundado no desinteresse e naquele tocante amor espiritual que os vinculava, auspicioso gérmen associativo, cuja continuidade e desenvolvimento não tardaram, todavia, em ser mutilados, logo no primeiro século, em consequência das perturbações que a nação judaica vinha padecendo, agravadas sobretudo e rematadas no tremendo epílogo, que foi o cerco de Jerusalém, com a sua definitiva e irremediável dispersão.

            Embora nunca mais renovada, na sucessão dos séculos, por força mesmo das ulteriores vicissitudes que haviam de transviar a obra do Cristianismo de sua primitiva orientação social e humana, essa tentativa, de que o ascetismo de certas ordens religiosas e as comunidades claustrais posteriores não são mais que uma deturpação exclusivista e estéril, convinha ser recordada não só como um testemunho documental de que no Evangelho de Jesus se encontram em gérmen os fundamentos da mais adiantada forma de organização da sociedade, como para estabelecer-se um instrutivo paralelo, mais que nunca oportuno em nossos dias, entre aquele comunismo pacífico da primeira geração cristã, espontâneo em seus métodos de realização (1), e o comunismo revolucionário contemporâneo, violento em seus processos e que, a pretexto de igualitárias reivindicações - no fundo indubitavelmente legítimas - outra coisa não pretende, nem realizou até agora com a subversiva experiência consumada na Rússia, que não seja uma brusca inversão de posições entre as classes sociais, tornando opressora a que fora oprimida até a véspera e, em lugar da fraternidade, que nem mesmo entre os seus adeptos é sinceramente praticada, contribuindo para mais profundo tornar o dissidio entre cidadãos de uma mesma pátria.

            (1) Veja-se Atos, cap. V. 4.

            A diferença fundamental consiste em que o primeiro se inspirava no Amor, associado ao respeito pela liberdade natural do homem - únicos princípios em que se pode esteiar uma união verdadeiramente fecunda e solidaria entre todos eles - e, considerando a transitoriedade desta vida, focalizava na Imortalidade as suas aspirações, ao passo que o outro, materialista e irreligioso, inspira-se no ódio de classes, que erige mesmo em bandeira de combate, e, banindo toda preocupação imortalista, faz da vida presente e da apropriação dos bens efêmeros que lhe são peculiares a finalidade do destino humano. É uma obra construída na areia movediça das contingências terrestres e não sobre aquela rocha viva de que falou Jesus, aludindo à aplicação de sua palavra - que o é de vida eterna - aos atos da vida humana, individual e coletiva. Obra do AntiCristo, que visa perpetuar a divisão entre os homens, alimentando-lhes as paixões inferiores, enquanto o comunismo, ou melhor, o socialismo cristão, que há de ser um dia a forma definitiva de sua organização econômica e politica, tende a reuni-los em um largo espirito de verdadeiro cooperativismo fraterno, sem odiosas exclusões.

            O núcleo constitui do pela primeira geração cristã, é certo que não passou de um esboço rudimentar, em sua feição particularista, sem nenhuma repercussão na esfera político-administrativa, em cuja atividade, ao demais, estavam excluídos de participar aqueles imediatos continuadores de Jesus, em sua quase totalidade pertencentes à nação judaica, reduzida a mera tributaria do Império Romano omnipotente, mas tendo começado pela abolição voluntária - a tanto equivalente a alienação, que efetuavam - da propriedade territorial justamente considerada apropriação criminosa de um bem comum a todos, representou por isso mesmo, na singeleza de seus moldes, um precedente exemplificador do que hão de ser, no futuro, as sociedades humanas organizadas segundo os enobrecedores princípios do Evangelho.

            Mais tarde veremos como as largas doações de terras, pelos imperadores romanos feitas ao papado, contribuíram para precipitar a decadência do Cristianismo, convertendo-o progressivamente numa instituição de caráter acentuadamente mundano, em contra posição aos desígnios de seu Divino Instituidor, que lhe havia traçado a altruística diretriz, formalmente proclamando: "Meu reino não é deste mundo". Por agora cumpria apenas indicarmos a origem cristã da grande reforma social, que os turbulentos pregoeiros de nossos dias se esforçam em levar à prática, não somente renegando essa origem, mas promovendo guerra de extermínio à Doutrina em cujos princípios se inspiraram os seus primeiros desinteressados realizadores.

            Encerremos, pois, aqui este parêntesis e prossigamos na enumeração de alguns dos mais significativos episódios que assinalaram a incoercível marcha do Evangelho, rumo do Ocidente, sobretudo no que se refere aos lances de heroísmo praticado pelos seus destemidos portadores e que tanto haviam de contribuir para a sua edificante e gloriosa consolidação. 

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