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quarta-feira, 22 de outubro de 2014

1b. AntiCristo Senhor do Mundo


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 AntiCristo Senhor do Mundo
por Leopoldo Cirne
Edição  – 1935


1b

            Há quase dois milênios, recebeu a Terra a visita do Plenipotenciário celeste, portador dessas virtudes redentoras. Como agora - pois que os ciclos históricos se renovam, quase idênticos, a intervalos regulares - a iminência de uma grande crise se desenhava para a humanidade. Em vésperas de ruir o gigantesco Império Romano, alicerçado na pilhagem, em que vinham por fim a culminar suas incursões e aventuras guerreiras contra os outros povos, a civilização latina, desse modo transviada de sua missão, depois de haver recolhido a herança de hegemonia helênica, intelectual e artística, estaria condenada, com ele, a sucumbir poucos séculos mais tarde, menos certamente ao ímpeto vingador das hostes bárbaras, que diluída no aviltamento dos costumes e das instituições, se aquele crepúsculo do mundo antigo não devesse, com o Cristianismo nascituro, suceder a aurora de uma salvadora renovação.

            Quando, pois, ainda atroava os ares o passo das legiões romanas, levando por toda parte o signo de suas águias vitoriosas, sobreveio o inesperado raiar desse novo dia. Dia definitivo para a humanidade, posto que, ao começo, não somente ensombrado de nuvens que por muito tempo, como ainda hoje, lhe haviam de toldar a limpidez e retardar a plenitude, mas em condições, aparentemente, as menos expressivas de sua magnitude e significação.

            Que importância, com efeito, aos olhos dos Césares, embriagados de triunfo, e aos do próprio povo, embrutecido na ignorância e nas paixões, e que era, não obstante, o braço
executor das violências planejadas pelas maiores forças políticas representativas do mundo antigo, poderia revestir o nascimento do filho de um obscuro carpinteiro, na mais humilde cidade da Judeia, nessa Palestina distante e escravizada.

            E no entanto foi esse, que assinalou o advento do Cristianismo, o fato culminante de toda a história humana, com razão considerado o marco, inapagável e insubstituível, que a divide em duas épocas perfeitamente definidas. Para traz ficavam a consagração da força, a exploração do homem pelo homem, os privilégios de castas e de classes, conferidos por toda parte a minorias insignificantes, em detrimento dos direitos naturais de todos, o desprezo dos grandes e, conseguintemente, o ódio dos pequenos, a ignorância geral, favorecendo o império das paixões inferiores, como estimulante único das ações humanas, em uma palavra, treva nos corações e treva nas inteligências, tendo como expressão inevitável desconhecimento e indiferença pelo "amanhã", que há de fatalmente suceder ao breve dia que representa uma existência aqui na Terra.

            Com Jesus, e graças a Jesus, que vinha fazer da sobrevivência e imortalidade da alma, isto é, da certeza de uma vida futura a pedra angular de seus ensinamentos, o objetivo a que se deve encaminhar a vida efêmera do homem, ia começar, no ponto de vista social, a era da liberdade e da igualdade jurídica de todos, o primado do direito sobre a força e, portanto, o império da Justiça, o estabelecimento da paz pelo reconhecimento da fraternidade, baseada na paternidade universal de Deus, e, no ponto de vista dos destinos eternos que vinha revelar aos homens, era o reino do espírito que para estes devia começar, pelo triunfo sobre a matéria e todas as suas seduções.

            Para a realização inicial desse admirável programa de reabilitação da nossa espécie, a que se descerravam tão dilatados horizontes, contra o qual, todavia, por isso mesmo se haviam de levantar, como o veremos no curso desta obra, todas as forças tenebrosas do invisível, empenhadas em manter a humanidade escravizada ao seu domínio, não se apresentou Jesus como um mero pregoeiro teórico, senão que, imprimindo as verdades e aos preceitos, que o Pai o incumbira de lecionar aos homens, a autoridade e a sanção do exemplo, viveu um a um todos os seus ensinamentos nos atos de sua vida incomparável.

            Neste, como, de resto, em todos os sentidos, a sua figura, sobranceira às vicissitudes dos séculos, é única entre as de todos os grandes Iniciados e Reformadores que, antes e depois d’Ele, têm atuado no cenário terrestre.

            Enquanto, por exemplo, o Buda (Sidarta Gautama ou Çakya Muni) - sem dúvida excelso missionário, propulsor do mais importante movimento de renovação religiosa, depois dos Vedas, empreendido entre as populações da Índia, como da China e do Japão - só aos 29 anos abandona o seu palácio real e as regalias de príncipe, que desfrutava, para engolfar-se no isolamento e na meditação, que precederam a sua jornada de proselitismo, e esse outro eminente doutrinador, que foi Krishna, teria que, pela fatalidade de suas circunstâncias pessoais, opor aos místicos arrazoados filosóficos, de que se fez arauto, o contraste de sua condição de guerreiro e a fragilidade da poligamia, sancionada embora pela tolerância, em tal sentido, generalizada entre os orientais, o Cristo não somente oferece ao mundo o testemunho de uma vida, de começo ao fim, absolutamente imaculada, mas desde logo marca a originalidade e a coerência dessa vida com a doutrina de que era Ele portador, elegendo para lugar de seu nascimento um estábulo de animais. Escolha inconcebível, mas intencional da parte d'Aquele que, sempre Espírito, presidiu a uma parte e prestou a outra parte dos sucessos, relacionados com a sua investidura messiânica, o seu voluntário assentimento.

            Desse modo começada no berço, a apologia da pobreza - pois que o presépio de Belém é uma alegoria e um ensinamento como expressão sintética de renúncia a todos os bens e opulências da terra, o desapego, que semelhante escolha traduz, às coisas exteriores, consideradas obstáculo à aquisição da riqueza moral interior, foi a primeira lição com que Jesus entendeu conveniente edificar os homens. Lição igualmente de humildade, que havia de ser, em todos os tempos, o inseparável característico do verdadeiro cristão. Assim também o amor.

            Por que motivo o Espírito perfeito, que é o Cristo, no consenso unânime de quantos, através os séculos, têm procurado contemplar de perto e entender a sua angélica figura - exceção apenas feita de alguns de entes mentais que d'Ele têm, irreverentemente, pretendido fazer um caso de psicologia mórbida - por que motivo, perguntamos, teria o excelso Filho de Deus renunciado, temporariamente embora, às esferas da luz eterna em que reside, para mergulhar nas trevas deste mundo e entrar em contato direto com as misérias, enfermidades e paixões dos que o habitam? - Se bem atentarmos em seu caráter, nas linhas estruturais de sua missão divina, reconheceremos que o fez, não por necessidade ou interesse próprio. Ele que jamais antepôs a um só de seus atos a menor sombra de preocupação pessoal, mas unicamente por amor a esta pobre raça humana, falida e estraviada, que, quanto mais sucumbe às tentações do espírito do mal, que aqui impera, mais se recomenda à enternecida e misericordiosa piedade com que se tem Ele proposto a redimir-nos. Redenção completa e universal, todavia, somente quando um a um, na sucessão dos séculos, libertos da cegueira que nos obscurece agora o entendimento e nos coloca à mercê daquelas tentações, nos houvermos todos convertido, por uma adesão interior, sincera, inviolável e constante, à lei de amor e de humildade, que é o angulo fundamental de todos os ensinamentos evangélicos, do mesmo modo que foi o eixo em torno do qual girou toda a existência de Jesus.

            Humilde foi, portanto, o seu berço, em intencional contraste com a sua inconfundível grandeza espiritual; acanhado e pobre, humilde, portanto, o cenário em que desenvolveu
mais tarde a sua ação evangelizadora; humildes as figuras de que se rodeou então, recrutadas, em sua totalidade, nas classes mais obscuras da sociedade judaica, para serem, durante o seu messianato, as urnas vivas encarregadas de recolher os exemplos e as palavras de vida eterna que trazia aos homens, e depois de seu regresso ao seio do Pai, que o enviara, os propagadores da Boa Nova que, varando as fronteiras em todas as direções, abriria para o mundo a era da verdadeira civilização, isto é, da civilização cristã, devesse embora prolongar-se por dezenove séculos, a sua acidentada fase inicial.

            Dentre os apóstolos, com efeito, aos quais dirigiria mais tarde a significativa palavra de exaltação, advertindo-os: “não fostes vós que me escolhestes a mim, fui Eu que vos escolhi a vós", quatro - Pedro, André, Tiago e João - eram rudes pescadores; um, Mateus, pertencia à odiada classe dos publicanos, que o Mestre, em mais de uma ocasião, para confundir a arrogância dos que os desprezavam, apresentaria, de par com os samaritanos, não menos odiados, como paradigmas de fidelidade à lei divina, herdeiros legítimos do Reino; os restantes eram, do mesmo modo, figuras plebeias, destituídas de toda significação social.

            E foi com esses elementos, na aparência e segundo a cegueira do conceito humano, absolutamente negativos, que Jesus empreendeu a obra gigantesca de transformar a face moral do nosso mundo, começando por uma intrépida subversão dos consagrados valores sociais e humanos, de que era expressão aquela mesma escolha dos apóstolos.



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