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quarta-feira, 15 de maio de 2013

2c (final) 'O Dogma Espírta'




2c   O dogma espírita

por Luciano dos Anjos
in Reformador (FEB) Jan-Fev 1964


            Dissequemos o problema do dogma com mais profundidade ainda. A teologia dogmática, que já analisamos em parágrafos anteriores, cumpre três deveres distintos: a) apresentar o dogma como é atualmente no ensino da Igreja, extraindo-o das chamadas fontes simbólicas; b) prová-lo com a Escritura e a Tradição; c) aprofundá-lo especulativamente, quanto possível.

            Não é difícil verificar que o processo de apresentar, provar e aprofundar é sempre de natureza racional, a despeito da repulsa da Igreja ao sistema racionalista. Mas vamos adiante Na apresentação do dogma, é recomendada a atenção aos seus próprios escritos. Na prova são aconselhadas "as normas científicas usadas hoje pela exegese e tantas vezes recomendadas pela Igreja" ("Introduzione allo Studio dei Dogma", de Glorieux, edição Paulina de 1951). No aprofundamento é recomendada a fé como ponto de partida, além dum ângulo ou crivo filosófico que não seja outro senão o do aristotelismo escolástico, indicado nas encíclicas "Aeterni Patris", de Leão XIII, de 1879, e "Humani Generis", de Pio XII, de 1950. Repare-se que, na hora de "apresentar" o dogma, a grande fonte é sempre o ensino da própria Igreja e os chamados escritos simbólicos, também dessa mesma Igreja. Para isso ela impõe o uso duma linguagem teológica fixa, "pois se cada teólogo quisesse criar um vocabulário próprio, resultaria uma tremenda confusão" ("Enchiridion Symbolorum et Definitionum", págs . 159, 161, 442 e seguintes). Impõe ainda que se evite "a novidade profana de palavras" e, citando Santo Agostinho, obriga o uso "duma regra determinada para que o uso arbitrário dos termos não venha a criar uma opinião errônea sobre o que designam". A isto chamam "apresentar o dogma na sua verdadeira realidade". Como vemos desde logo, é praticamente dogmatizar antes mesmo de apresentar o próprio dogma... Repare-se em seguida que, na hora de "provar" o dogma, só tem valor a exegese católica, o que evidencia uma condição "a priori", profundamente repugnante. A prova que não trilhe a norma da ciência católica, não serve nunca. Finalmente, repare-se que a especulação só se permite através duma determinada escola filosófica, qual seja, a do aristotelismo escolástico, o que seria o mesmo se nós, espíritas, propuséssemos: aceitaremos a doutrina católica, desde que nos convençam dos seus postulados através unicamente da escola filosófica dos materialistas... Um beco sem saída. Além disso tudo, quando a fé é imposta como princípio diretivo da especulação, poder-se-ia certamente indagar: que fé? A fé cega, sem dúvida, tão sem valor e sem convicção interior. No mais, como seria possível a fé (apesar de cega) numa verdade que ainda vai ser proclamada pela teologia dogmática, depois daquelas três exigências? Afinal, é a Verdade que gera a fé ou a fé que gera a Verdade? Parece que estamos, agora, dentro dum círculo vicioso...

            O processo espírita é muito diferente. E, antes de examiná-lo, leiamos rapidamente esse conceito de Léon Denis, contido em "O Problema do Ser, do Destino e da Dor", à pág. 30 da 8ª edição da FEB:  "Hoje, já não basta crer; quer-se saber. Nenhuma concepção filosófica tem probabilidade de triunfar, se não tiver por base uma demonstração que seja, ao mesmo tempo, lógica, matemática e positiva, e se, além disso, não a coroar uma sanção que satisfaça a todos os nossos instintos de justiça." Um pouco antes, à pág. 28, lemos: "O novo espiritualismo dirige-se, pois, conjuntamente, aos sentidos e à inteligência. Experimental, quando estuda os fenômenos que lhe servem de base; racional, quando verifica os ensinamentos que deles derivam, e constitui um instrumento poderoso para a indagação da verdade, pois que pode servir simultaneamente em todos os domínios do conhecimento." Em nota elucidativa ao pé da pág. 32, afirma: "Os fatos não têm valor sem a razão que os analisa e deles deduz a lei." "Por conseguinte, o método que se impõe é: 1º) a observação dos fatos; 2º) a sua generalização e a investigação da lei; 3º) a indução racional que, além dos fenômenos fugitivos e mutáveis, percebe a causa permanente que a produz." Assim - podemos agora repetir com ênfase - o método espírita tem a seu favor, no enunciado da Verdade, esse caminho novo e todo especial, embora muito simplista: a Razão e os Fatos experimentais, depois, obviamente, da Revelação. Nesse sentido é que o Espiritismo também tem seus dogmas, como aliás bem acentuou o nosso brilhante e estudioso confrade Carlos Imbassahy, no seu excelente trabalho intitulado "Religião", quando diz, à pág. 150 da edição de 1952, da FEB: "Nem ao dogma, talvez, se fugisse, visto que, para o espiritista, a existência de Deus é ponto fundamental e indiscutível". A esse método aliemos ainda o criticismo kantiano no seu aspecto mais extraordinário, do ponto de vista do conhecimento, qual seja o da impossibilidade de se conhecer toda a verdade através da razão. Isto pode parecer paradoxal, mas não o é. Vamos mais uma vez tentar explicar porquê. Lembremo-nos de que Kant admitiu, como necessário, não apenas Deus, mas também a existência e imortalidade do Espírito, embora não nos fosse possível apreender a essência dessas duas grandes verdades. Ora, não é isto exatamente o que nos ensina o Espiritismo? Não é isto que consta, como já vimos, de "O Livro dos Espíritos"?

            O próprio Kant acabaria sendo considerado paradoxal, se não fosse levada em conta, com bastante inteligência, a sua filosofia. Entre a "Crítica da Razão Pura" e a "Crítica da Razão Prática" há um abismo para o estudioso desprevenido. No primeiro, Kant destrói a metafísica cientifica "para em seu lugar elevar-se a metafísica da fé. Do cristianismo da razão pura, passa Kant ao dogmatismo moral" ("Noções da História da Filosofia", do padre Leonel Franca, pág. 178 da 12º edição da AGIR). Após a publicação da "Crítica da Razão Pura", Reinhold disse que a obra foi proclamada pelos dogmatistas como a tentativa dum cético para abalar a certeza de todo o conhecimento; pelos céticos, como um trabalho arrogante, presunçoso, visando a erigir nova forma de dogmatismo sobre as ruínas de sistemas anteriores; pelos supernaturalistas, como um artificio habilmente maquinado para afastar os fundamentos históricos da Religião e estabelecer sem controvérsias o naturalismo; pelos naturalistas; como um novo alento à agonizante filosofia da fé; pelos materialistaa, como uma confutação idealista da realidade da matéria; pelos espiritualistas, como uma injustificável confinação da realidade do mundo corpóreo, escondido com o título de domínio da experiência.

            Ora, se o kantismo é capaz de ser ao mesmo tempo criticista e dogmático, porque não o pode também o Espiritismo? Considere-se ainda que este, além do mais, joga com fatores absolutamente estranhos ao kantismo e que facilita sobremodo a compreensão do aparente paradoxo. A Doutrina dos Espíritos envolve dois campos do conhecimento: o dos encarnados e o dos desencarnados, provando experimentalmente essa dupla posição da existência e do pensamento das criaturas. Isto facilita muitos problemas. O Espírito desencarnado pode conhecer, muitas vezes, algumas verdades a mais que, na condição de encarnado, lhe estariam veladas à sua razão relativa. Aqui ele se sujeita ao criticismo, e do lado oposto da vida, falando-se em tese, já não está mais tão fortemente sujeito a esta condição. Admitido o intercâmbio entre os dois mundos, teremos então atingidas algumas verdades antes incognoscíveis na sua essência.

            Voltemos agora ao raciocínio inicial. Por tudo isso, nada há de estranho na afirmativa de Kardec de que o Espiritismo tem alguns dogmas. Trata-se, entretanto, de alguns poucos pontos fundamentais da Doutrina, contidos na Revelação Cristã, na Revelação kardecista e em outras, dignas de respeito, como é o caso da "Revelação da Revelação", de Roustaing. A Razão e a Lógica os sancionam. Os Fatos os comprovam. A universalidade dos estudiosos os atestam. Não há, pois, porque temer a palavra, se encaramo-la do ponto de vista que de fato encerra a sua etimologia: pensamento, convicção, doutrina. Nenhum espírita pode negar a Deus. Nenhum espírita pode negar a comunicação entre vivos e mortos. Nenhum espírita pode negar a imortalidade da alma. São dogmas, porém, concluídos diferentemente da Igreja Católica, por tudo o que vimos expondo até aqui. Não são decretados por uma autoridade humana, por um concilio ou por uma reunião do bispado. Nem tão pouco são votados por um grupo qualquer que, em assembleia fechada, decide pretensiosamente o que é ou não é verdade. O que se deve temer não é propriamente o termo dogma, mas, antes, o termo dogmática. "A Teologia Dogmática é a fonte por onde se passa do regime de liberdade para o de escravidão", disse com muita propriedade o Padre Alta no seu livro "O Cristianismo do Cristo e dos seus Vigários", à pág. 314 da edição de 1951 da FEB. Através da dogmática é que surgem até hoje os dogmas mais absurdos da Igreja Católica. Com seu critério dogmático a Santa Madre impõe o Juízo Final, o Inferno, a Santíssima Trindade, a Infalibilidade do Papa, e uma série imensa de outras ilogicidades. Através da dogmática a Igreja manietou a Razão, violentou as consciências e inventou um rosário de dogmas "católicos". Com eles conspurcou o verdadeiro Cristianismo, enceguecendo-se ante as novas verdades que o Consolador Prometido trouxe à Humanidade e viciando-se na mentira e na simonia. Buscando aflita uma saída para sua incrível e insustentável posição filosófica, agarrou-se a uma moderna "interpretação progressiva" do dogma, preparando o caminho para uma fuga estratégica futura, mas, de qualquer forma, envencilhada num inextricável emaranhado que a esgotará paulatinamente e pouco a pouco lhe exaurirá até as últimas forças.

            Este trabalho não deveria terminar aqui. Deveríamos aprofundar alguns dos muitos pontos necessariamente passíveis de maiores esclarecimentos: entretanto, essa tarefa não a comportam as páginas limitadas do "Reformador". Apenas para arrematar, reafirmemos esta breve sinopse de toda a matéria abordada:

            1 - O Espiritismo se enquadra no dogmatismo filosófico moderado, por entender que a criatura, em determinadas circunstâncias, pode alcançar a Verdade absoluta. (Leia-se, a propósito, nosso artigo intitulado "Ao Encontro de Deus", publicado em "Reformador" de Novembro de 1962.)       

            2 - O Espiritismo repele a teologia dogmática dos católicos por lhe negar os critérios de verdade que adota e o sistema aplicado na proclamação dos seus dogmas.

            3 - O Espiritismo possui alguns poucos dogmas extraídos das Revelações Divinas, aceitos porém pela Razão, quando esta não minimiza Deus nos Seus juízos e quando são confirmados experimentalmente pelos Fatos.

            4 - O Espiritismo admite o criticismo transcendental kantiano, por conceber que há verdades impossíveis de, no estado atual dos encarnados (e, às vezes, também dos desencarnados), serem assimiladas tais quais são, pela Razão limitada e relativa das criaturas.  


 Fim



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