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quarta-feira, 15 de maio de 2013

2a. O 'Dogma Espírita'







 2a   O dogma espírita

por Luciano dos Anjos
in Reformador (FEB) Jan-Fev 1964


            Passemos afinal ao ponto capital deste trabalho e que gira em redor do último termo em questão: dogma. Diga-se antes de tudo que ele se origina do verbo grego "dokein" (pensar), significando, na verdadeira acepção etimológica: pensamento, doutrina, convicção. Os antigos queriam significar com essa palavra uma firme resolução e uma decisão de autoridade, quer no campo da Ciência, quer no da vida do Estado. Neste último sentido encontramo-la no bojo da própria Bíblia, como podemos verificar dos seguintes exemplos:

            "Se bem parecer ao rei, decrete-se que sejam mortos, e nas próprias mãos dos que executarem a obra eu pesarei deles dez mil talentos de prata que entrem para os tesouros do rei" (Et.3-9); "Saiu o decreto, segundo o qual deviam ser mortos os sábios; e buscaram a Daniel e aos seus companheiros, para que fossem mortos." "Agora, pois, ó rei, sanciona o interdito, e assina a escritura, para que não seja mudada, segundo a lei dos medos e dos persas, que se não pode revogar" (Dn. 2-13 e 6-8); "Naquele dia foi publicado um decreto de César Augusto, convocando toda a população do império para recensear-se" (Lc. 2-1); "Ao passar pelas cidades, entregavam aos irmãos, para que observassem, as decisões tomadas pelos apóstolos e presbíteros de Jerusalém." "Aos quais Jasom hospedou. Todos estes procedem contra os decretos de César, afirmando ser Jesus outro rei" (At. 16-4 e 17-7); "Aboliu na sua carne a lei dos mandamentos na forma de ordenanças, para que dos dois criasse em si mesmo novo homem, fazendo a paz" (Ef. 2-15); "Tendo cancelado o escrito de dívida, que era contra nós e que constava de ordenanças, o qual nos era prejudicial, removeu-o inteiramente, encravando-o na cruz" (Cl. 2-14); "Pela fé, Moisés, apenas nascido, foi ocultado por seus pais, durante três meses, porque viram que a criança era famosa; também não ficaram amedrontados pelo decreto do rei" (Hb. 11-23),

            Ora, com o tempo a palavra foi ganhando sentido mais radical e acabou por traduzir o ponto fundamental e indiscutível duma doutrina religiosa e, por extensão, de qualquer doutrina ou sistema. Acabaria por significar, ainda, o conjunto das doutrinas fundamentais do Cristianismo, segundo proposta dos alexandrinos. Desde o quarto século, paulatinamente tem início a restrição do termo às doutrinas de fé. O dogma, assim, não há de ser palavra tão feia, tal como muita gente pensa, Até que é bastante inocente, Começa entretanto a assustar quando é adjetivada. Por exemplo: o dogma católico ("dogma catholicum"). Ganha então um significado inteiramente novo e muito diferente daquele comum, não tanto pelo que exprima, mas pelas premissas que lhe antecedem a decretação. No caso específico desse dogma temos então "uma verdade religiosa revelada sobrenaturalmente por Deus e, como tal, proposta a crer pela Igreja" ("Teologia Dogmática", de Bernardo Bartmann, pág. 15 da 1ª edição brasileira). E enquanto o clero cuidasse apenas de propor realmente dogmas cristãos, extraídos do Evangelho, não seria tanto de se condenar sua atitude, senão apenasmente na parte em que margeia a Razão e interpreta a Boa-Nova a portas fechadas, a pretexto dum carismo que se arrogou arbitrariamente ou da pretensa assistência privilegiada do Espírito Santo, Por isso, com esse nome, a Igreja passou a propor (antes, impor) uma série de tolices e absurdos, subproduto de concílios solenes e abusivos decretos papais. Vejamos um pouco mais o que o erudito Bernardo Bartmann ensina na sua "Teologia Dogmática", à página 16 da edição citada:

            "Visto que o dogma, tomado em sentido estrito, exige a Revelação sobrenatural, segue-se daí que as verdades que a Igreja ensina, não hauridas porém naquela fonte, são dogmas impropriamente ditos. " Note-se que é um respeitável membro do clero que, honestamente, faz a afirmativa, contrariando, de certa forma, o normal comportamento da cúpula eclesiástica. Difícil se torna, contudo, convencê-la, a ela, à Igreja, de quanto se afasta, deliberada ou inocentemente, das fontes da Revelação, na maioria, na grande maioria dos seus dogmas.

            Confirmemos, de nossa parte, a imprescindibilidade de que o dogma, para ser autêntico, tenha de estar contido na Revelação. Nada há de repugnante, por exemplo, no dogma da existência de Deus. Os espíritas não podem rejeitar essa afirmativa e têm todos, igualmente, convicção dessa Verdade: Os que a não têm deixam automaticamente de ser espíritas, embora sua posição de forma alguma lhe obste a entrada no reino dos céus.

            Há dois aspectos, entretanto, que já nesta altura não podem deixar de ser devidamente esclarecidos. O primeiro diz respeito à extensão da Revelação, em face da qual espíritas e católicos discordam. Enquanto estes consideram-na, estranhamente, encerrada com a morte de João Evangelista, o último dos apóstolos, aqueles, considerando as promessas do próprio Cristo, aceitam a sua complementação progressiva. Por isso, às vezes, nós, os espíritas, vamos buscar outros pontos de convicção naquela que é a Terceira Revelação e que, de resto, não contrariou sequer a primeira ou a segunda, mas apenas esclareceu-as melhor.

            Lembramos aqui que foi a falsa convicção do farisaísmo nos seus dogmas que encegueceu os seus adeptos e impediu-os de raciocinar sobre as novas e progressivas verdades que Jesus trouxe ao mundo. No mais, essa história de afirmar (aliás, gratuitamente) que a Revelação se encerrou com o Novo Testamento deixa muito mal o Criador que, nessa hipótese, teria esquecido completamente todos os povos anteriores ao Cristo, permitindo que somente os que nasceram de sua época em diante (desde que se neguem as existências passadas e que o Espírito nasce uma só vez na Terra) viessem a ser premiados com o conhecimento de verdades maiores ou, antes, das verdades definitivas sobre tudo e sobre todos, A progressividade espírita da Revelação não conspurca assim o Criador, apresentando-O como um Ser realmente Sábio e Perfeito que vai permitindo às Suas criaturas aprender e evoluir, em todas as épocas, à medida que as Verdades Eternas lhes vão sendo reveladas.

            Mas, mesmo que se quisesse - apenas para argumentar - raciocinar em torno tão-somente da Revelação Cristã, como a última trazida ao mundo, ainda assim os pontos de vista espíritas afloram muito mais natural e fluentemente do que aqueles que precisam de concílios para ser compreendidos e proclamados. É o caso da reencarnação.

            O segundo aspecto que prometemos referir, além da extensão da Revelação, é o da aplicação da Razão à própria Revelação. É assim que, conforme já frisamos seguidamente, somos racionalistas, enquanto a Igreja faz aditar à Revelação a chamada Tradição (símbolos da fé, concílios, escritos dos padres, etc.), a fim de proclamar os seus dogmas. Daí a cautela da Santa Madre: "Há limites que a especulação não pode transpor sem perigo para o dogma" ("Teologia Dogmática", página 113). A Igreja, como já vimos, não admite a aplicação da Razão aos dogmas que ela propõe, esquecida de que, nos concílios, é o puro racionalismo que em última análise orienta os debates e faz gerar as soluções decretadas. E se assim não fora teríamos o caos das ideias no seu mais amplo sentido.


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