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terça-feira, 14 de maio de 2013

1a. O Dogma Espírita



Não é inédito na web mas que é bom de ler e entender, isso é..




1a   O dogma espírita

por Luciano dos Anjos
in Reformador (FEB) Jan-Fev 1964

            Poucos, pouquíssimos são os que não se surpreendem com determinada expressão empregada por Allan Kardec em algumas de suas obras e, de certa forma, honestada pelo Espírito da Verdade.

            Trata-se do termo dogma, usado pelo Codificador quando tece comentários sobre a lei da reencarnação ou quando, a respeito dela, faz ao Alto algumas perguntas específicas. Em "O Livro dos Espíritos" ali está o "repelente" termo na forma da pergunta 171 e, mais adiante, como tema de todo o capitulo V. Em "O Evangelho segundo o Espiritismo" também o assunto é abordado no capítulo IV, onde deparamos com o mesmo vocábulo. Da mesma forma temos a questão comentada por Allan Kardec em "O Que é o Espiritismo", no "Terceiro Diálogo" do capítulo I. O raciocínio generalizado é, sem dúvida, no sentido de que existe um profundo contra senso nas lições do Codificador ou dos seus mentores. O Espiritismo, ao que se saiba, não teria dogmas nem os admitiria. O Espiritismo tem sido antagonista do dogmatismo católico e, portanto, não se compreende que proclame os seus próprios dogmas. Estaríamos, pois - caso a verdade não seja outra, como de fato o é -, diante dum ingente erro doutrinário ou, ainda, dum comportamento falso da parte dos espíritas em geral, quando rejeitam os dogmas católicos ou os de quaisquer outras religiões. Ou, então, como última hipótese, o problema ofereceria ângulos e nuanças ainda não observados por muitos, mas que, analisados com mais vagar, tornam-se claros e cristalinamente racionais. Esse problema requereria apenas um equacionamento adequado, por qualquer motivo não ocorrido aos estudiosos. Toda questão, para ser bem compreendida, carece de ser, antes que tudo, bem equacionada, ou, como propõe Descartes, dividida no maior número de partes, de forma a que se torne passível da maior compreensão e do melhor entendimento.

            Regra geral há uma grande confusão em torno - já não dizemos mais da essência do problema, - mas das próprias palavras que o exprimem. E confusão que poderíamos classificar dentro de duas faixas: uma, sobre o significado do vocábulo dogma; e outra, muito maior ainda, entre este mesmo vocábulo e mais dois outros, muito parecidos e aparentemente sinônimos, quais sejam, dogmatismo e dogmática. Vejamos, ao lado das definições, a posição do Espiritismo em face de cada uma dessas palavras, ao mesmo tempo em que procuraremos paulatinamente desvanecer a confusão que elas fazem gerar.

            Comecemos pelo termo dogmatismo e com isso entremos diretamente no campo da mais alta e pura Filosofia. Entende-se por dogmatismo a doutrina dos que pretendem basear as suas ideias apenas na autoridade, não admitindo qualquer crítica ou discussão, Estipula ainda o caráter dos processos e dos métodos didáticos que não toleram a participação ativa do aluno. Ao lado de mais três doutrinas fundamentais (o ceticismo, o probabilismo e o pragmatismo), o dogmatismo busca solucionar uma das mais graves e complexas questões da Metafísica: o conhecimento da verdade. Enquanto o cepticismo nega a possibilidade da certeza e sugere a dúvida universal como a única atitude do espírito; enquanto o probabilismo diz que nossos juízos são sempre prováveis apenas e nunca certos; enquanto o pragmatismo afirma que não cabe à inteligência conhecer a verdade mas sim mostrar a utilidade dela; enquanto isso, o dogmatismo postula que a verdade existe e que podemos conhecê-la. Alimenta a confiança de cada um de nós em nossas próprias faculdades intelectuais e na crença da realidade objetiva dos nossos conhecimentos, bem como na certeza de que a inteligência humana é capaz de atingir as verdades alusivas ao homem, ao Universo e a Deus. Em resumo, o dogmatismo é uma teoria do conhecimento que atribui ao homem a faculdade de atingir, pela razão, a verdade absoluta. Constitui o embasamento das doutrinas platônicas, peripatéticas, estoicas, neoplatônicas, cartesianas, leibnitzianistas e espinosistas. É o fundamento das grandes metafísicas. É o alicerce do edifício de Herbert Spencer.

            Existe porém um dogmatismo considerado verdadeiro, positivo, baseado nos diversos critérios da verdade, e um dogmatismo falso, negativo, que só aceita um critério, com exclusão dos outros. Incluem-se neste caso o fideísmo de Pascal e Huet, o tradicionalismo de Bonald e Lamennais, o sentimentalismo de Pascal, Rousseau e Jacobi, e o misticismo nas suas diferentes formas. Importa salientar, porém, que, depois de Kant, dogmatismo opôs-se não apenas a cepticismo, mas também a criticismo e a crítica. Kant identificou na história do pensamento uma tendência a confiar nas doutrinas sem que se houvessem submetido os seus fundamentos a um exame prévio, isto é, da própria atividade intelectual da criatura e do apanágio em que ela legitimamente se aplica. De acordo com Kant, o conhecimento é fruto de formas ou categorias do espírito, confinadas entretanto aos limites da experiência e sem valor nenhum fora dela, O dogmatismo, todavia, emprega tais categorias fora dos limites da experiência, atribuindo-lhes validade absoluta e assim se chocando frontalmente com o criticismo e com o cepticismo, este, por sua vez, negando a possibilidade de qualquer conhecimento.

            Ora, muito bem. Dadas estas explicações, onde classificar o Espiritismo, em face do conhecimento da verdade? No capítulo II de "O Livro dos Espíritos", da questão 17 à questão 20, encontramos alguns esclarecimentos sobre o "conhecimento dos princípios das coisas". Os Espíritos ensinam que "Deus não permite que ao homem tudo seja revelado neste mundo" (nº 17), mas que "o véu se levanta" aos olhos do homem "à medida que ele se depura" (nº 18), bem como que "a Ciência lhe foi dada para seu adiantamento em todas as coisas", embora não possa "ultrapassar os limites que Deus estabeleceu" (nº 19). Finalmente ensinam que o homem pode receber comunicações de ordem mais elevada que a Ciência, além do testemunho dos sentidos, se Deus "o julgar conveniente" (nº 20).

            Este o resumo metafisico da teoria do conhecimento da verdade vista pelo prisma kardecista. Temos, pois, que o homem, dentro de determinados limites, pode conhecer a verdade, na medida em que se depura ou em que Deus o julgue conveniente. Sem dúvida, não corresponde, esse postulado, à conceituação céptica, que afirma ser a única atitude legítima do espírito humano a da dúvida permanente e integral. Não corresponde também ao probabilismo, que afirma serem os nossos juízos mais ou menos prováveis, todos eles, sem exceção alguma, sem nunca se tornarem certos. (O probabilismo, por sinal, é contraditório, pois, ao dizer que tudo é simplesmente provável, afirma e nega ao mesmo tempo uma certeza.) Não se quadra tampouco ao sentido pragmático, que acha que a verdade se caracteriza somente pela utilidade ou pela eficácia que possa ter para a ação. Destarte, restaria apenas o dogmatismo para nele ser acolchetada a noção espírita do conhecimento da verdade. E é exatamente ali que o vamos justapor. O Espiritismo é dogmático (metafisicamente falando), cabendo entretanto fazer uma separação indispensável entre dogmatismo exagerado e dogmatismo moderado. O primeiro prega a possibilidade duma certeza absoluta em todas as coisas; o segundo prega uma certa relatividade na aquisição da certeza, devido ao poder limitado da nossa inteligência e ao caráter provisório dos conhecimentos científicos. O Espiritismo cabe dentro do segundo. "A escola de Aristóteles e São Tomás - observa Maritain - ensina que a verdade não é nem impossível, nem fácil, mas difícil de ser atingida. Assim, ela se opõe radicalmente ao cepticismo e ao racionalismo. Vê na abundância dos erros cometidos pelos homens, e pelos filósofos em particular, um sinal de debilidade do nosso espírito, mas um motivo para se amar ainda mais a inteligência e se apegar mais estreitamente à verdade e até um meio para se fazer progredir o conhecimento (por refutações e elucidações que esses erros exigem de nós). Ela compreende, por outro lado, que a razão é o nosso único meio natural de entrar na posse da verdade, mas sob a condição de que seja formada e disciplinada: primeiro, antes de tudo, pela própria realidade, pois não é nosso espírito que mede as coisas, mas as coisas que medem nosso espírito; em seguida, pelos mestres, porque a Ciência é uma obra coletiva, não individual, e só pode ser edificada pela continuidade duma tradição viva; enfim, por Deus, quando decide ensinar aos homens e conceder aos filósofos a norma negativa de fé (e da teologia) ." ("Élements de Philosophie", pág. 131, ed. de 1932). Do professor Theobaldo Miranda Santos vale a pena ler também, a propósito, este trecho do seu "Manual de Filosofia", pág. 282, 4ª edição: "A ciência absoluta é um ideal que jamais poderá ser alcançado. Donde a necessidade da dúvida metódica como elemento propulsor do progresso científico. Mas, entre esta dúvida relativa e
prudente e a dúvida absoluta e universal que tudo nega e destrói, vai uma distância imensa e intransponível."

            Desde que o Espiritismo é considerado liberal sob todos os pontos de vista, por certo há  de chocar a afirmativa de que ele não tolera discussão ou crítica visando a alterações fundamentais dos seus postulados, tal como se caracteriza o dogmatismo filosófico. Dividamos aqui a questão em duas partes distintas e inteiramente dissociadas: o direito de discutir tendo em vista a salvação e o direito de discutir em relação aos fundamentos primários da Doutrina Espírita. Naquele caso temos o liberalismo pleno, sem que, por usufrui-lo, ninguém deixe de merecer a salvação, que antes está em função da moral individual de cada um (no caso, a cristã), do que do conhecimento autêntico desta ou daquela verdade universal. No segundo caso, porém, temos de nos submeter a um cerceamento desse liberalismo, de maneira a raciocinarmos dentro dos termos precisos da chamada autoridade dogmática. Isto porque, a Doutrina Espírita não pode admitir discussões, capazes de lhe modificar os fundamentos primários, em torno da existência de Deus, da imortalidade da alma ou da comunicação entre vivos e mortos. É evidente que aqui de nada valeriam os liberalismos. Quem não quiser aceitar esses postulados, deixa automaticamente de ser espírita.

            Na transcrição que acima fizemos do ponto de vista de Maritain há, como os leitores devem ter percebido, uma referência ao racionalismo, capaz de Ievá-los a descobrir uma contradição entre o dogmatismo sadio do Espiritismo e o racionalismo lógico que essa mesma Doutrina se compraz em defender. É que Maritain não se refere a racionalismo na acepção aceita pelo kardecismo. Ali o termo é empregado no sentido da total negação da autoridade e da rejeição da revelação sobrenatural. Ora, o racionalismo da escola kardecista consiste tão somente no emprego prudente da razão, na harmonização da Ciência com a Religião, na pesquisa do que a razão não entende, na rejeição do que a razão recusa. Nem tão pouco prega, o Espiritismo, a divinização da razão, apresentando-a como a única lei das ações humanas, tal como o fizeram os enciclopedistas do século XVIII (exceção honrosa de J. J. Rousseau), quando elegeram à glória do epinício a Deusa da Razão. O racionalismo espírita não é evidentemente o de Voltaire; mas se gloria em ser o de Rousseau. Todos os grandes gênios da época atribulada da "Enciclopédia" eram racionalistas. Todavia, o autor do "Contrato Social" divergia profundamente dos seus companheiros de ideais, advogando um racionalismo teísta e cheio de consolações. Crente de Deus e do conteúdo do Evangelho (mas abominando a posição falsa da Igreja), ocupou um lugar singular no concerto das ideias que marcaram a antevéspera da Revolução Francesa. E se considerarmos que foi Rousseau quem mais influenciou Pestalozzi e que foi este o grande mestre de Allan Kardec, nada estranharíamos por conseguinte que a Doutrina dos Espíritos trouxesse também na sua complementação humana, a marca indelével do racionalismo teísta. O racionalismo espírita é, portanto, o que deparamos sempre na linguagem do Codificador ou na do próprio Espírito da Verdade, situado nos mais variados termos, conforme o demonstram as transcrições abaixo:

            "O primeiro exame comprobativo é, pois, sem contradita, o da razão" (pág. 26 d’ O Evangelho segundo o Espiritismo", 51ª edição da FEB); "Não admitais, portanto, senão o que seja, aos vossos olhos, de manifesta evidência. Desde que uma opinião nova venha a ser expendida, por pouco que vos pareça duvidosa, fazei-a passar pelo crisol da razão e da lógica e rejeitai desassombradamente o que a razão e o bom-senso reprovarem" ("O Livro dos Médiuns", págs. 242/243, 27ª edição da FEB); " ... rejeitando-se, sem hesitação, tudo o que peque contra a lógica e o bom-senso, tudo o que desminta o caráter do Espírito que se supõe ser o que se está manifestando, leva-se o desânimo aos Espíritos mentirosos, que acabam por se retirar, uma vez fiquem bem convencidos de que não lograrão iludir. Repetimos: este meio é único, mas é infalível, porque não há comunicação má que resista a uma crítica rigorosa" (págs. 275/276, obra e edição citadas);  

            "É preciso sondar lhe o íntimo, analisar-lhe as palavras, pesá-las friamente, maduramente e sem prevenção, Qualquer ofensa à lógica, à razão e à ponderação não pode deixar dúvida sobre a sua procedência, seja qual for o nome com que se ostente o Espírito" (págs . 276/277, idem, ibidem); "Toda heresia científica notória, todo princípio que choque o bom-senso, aponta a fraude" (pág. 277, idem, ibidem) ; "Jamais os bons Espíritos aconselham senão o que seja perfeitamente racional" (pág. 279, idem, ibidem); "Para ele absolutamente não há mistérios, mas uma fé racional, que se baseia em fatos e que deseja a luz" ("Obras Póstumas", pág. 201 da 11ª edição da FEB).

            Poderíamos citar muitas outras passagens, mas isso se torna já desnecessário. Escolhemos propositalmente algumas que se referem mais precisamente às manifestações dos Espíritos porque, em última análise, toda a construção filosófica do Espiritismo está nelas sedimentada. Acrescentemos apenas, para reforçar, dois exemplos muito interessantes colhidos dentro dos Evangelhos:

            “E também faço esta oração: que o vosso amor aumente mais e mais em pleno conhecimento e toda a percepção, para aprovardes as coisas excelentes e serdes sinceros e inculpáveis para o dia do Cristo" (Fp. 1-9 e lO); “Julgai todas as coisas, retende o que é bom" (I Ts. IV -21) .

            Antes de passarmos adiante, consignemos uma palavra resumida sobre o criticismo de Kant, referido em linhas anteriores. Esta nossa preocupação decorre do fato de termos sido, até hoje, invariavelmente favoráveis a numerosos aspectos do pensamento filosófico do genial professor de Koenigsberg. Sendo o criticismo contrário ao dogmatismo e sendo enquadrado o Espiritismo, no campo da metafísica, em razões dogmáticas, como conciliar nossa posição pessoal e daqueles que porventura pretendam emprestar algum crédito ao nosso trabalho?

            Na verdade, depois de Kant, muitos pensadores passaram a contestar o valor absoluto das metafísicas chamadas racionais, negando as negações que lhes opõem e afirmando as induções morais que a razão prática permite e exige. Poderíamos estender a questão demoradamente até esclarecer que o Espiritismo, aceitando e comprovando experimentalmente a existência do Espírito desligado da matéria, pode dar sobejas formas de solução a muitos problemas que Kant equacionou em termos confinados a uma série de limitações inevitáveis, por não conhecer as leis da Terceira Revelação. Por isso afirmava que a Religião não podia ser provada pela razão pura e que "o conhecimento não pode ultrapassar os limites da sensibilidade" ("Critica da Razão Pura", pág. 215). Metafisicamente falando, Kant tem, em face do Espiritismo, os mesmos méritos que Freud tem do ponto de vista psicológico. Ambos não puderam ou não quiseram ir mais longe do que foram. Depois, é preciso não esquecer que, mesmo no campo de suas próprias ideias, sem aludir às de Allan Kardec, o kantismo nunca foi doutrina radical, pois se por um lado salvou a Ciência, por outro lado acabou salvando também a Religião! Se negava a prova de Deus e da existência duma alma livre e imortal, também afirmava a existência dum "ser necessário", como pressuposto de toda a realidade, Destarte, deixemos momentaneamente Kant e suas profundas teorias de lado e não precipitemos ilações falsas. E, voltando ao nosso tema central, reafirmemos a característica dogmática inevitável do Espiritismo, quando estuda o conhecimento metafísico da verdade, através da relatividade da certeza, da dúvida metódica e do prudente emprego da razão. Léon Denis pode aqui ser citado para robustecer nossas palavras. A página 30 da 8ª edição de "O Problema do Ser, do Destino e da Dor", lemos o seguinte: "Vê-se, pois, que o Espiritualismo moderno não pode, a exemplo das antigas doutrinas espiritualistas; ser considerado como pura concepção metafísica. Apresenta-se com caráter mui diverso e correspondente às exigências de uma geração educada na escola do criticismo e do racionalismo, a qual os exageros de um misticismo mórbido e agonizante tornaram desconfiada." Ora, poderíamos também indagar do grande filósofo kardecista, que exigências haveriam de ser estas, concomitantemente criticistas e racionalistas, duas teorias diametralmente opostas. Contudo - e isto é o que quisemos demonstrar linhas acima - o Espiritismo apresenta aspectos que vão muito além dos limites que essas e outras teorias obrigam, porque pode, afinal - por inaugurar o conhecimento do Espírito livre da matéria -, constituir-se sozinho num conjunto imenso de fundamentos capazes de solucionar todos os problemas da Metafísica.

            Arrematando esta primeira parte de nosso trabalho, podemos agora afirmar que, neste particular, com pequenas variantes (o aspecto racionalista, por exemplo), estamos todos de comum acordo (católicos, protestantes, hinduístas, islamitas, cristãos em geral) em face do conhecimento da Verdade, E não são de Jesus, de resto, as célebres palavras: ''Conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará?"



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