Pesquisar este blog

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

72. 'Doutrina e Prática do Espiritismo'




72


            Analisando estes exemplos e buscando a sua concordância com as exortações de Jesus sobre a reciprocidade do perdão entre os homens, como indispensável condição de o obterem de Deus para suas culpas, sem por outro lado perdermos de vista a obrigatoriedade das expiações e reparações, na lei divinal estatuída, acreditamos não ficar distanciado da verdade, firmando o seguinte principio:

            As transgressões perpetradas pelo homem contra as leis divinas podem ser divididas em duas principais categorias: aquelas que só prejudicam o indivíduo e as que são, tanto ou mais que a ele, prejudiciais ao próximo. Na primeira estão compreendidos os excessos, desvarios e abusos de todo gênero que, arruinando a saúde, a reputação e muitas vezes a bolsa, contribuem não raro para abreviar a vida. São antes leviandades que delitos, e as suas consequências não passam da pessoa do seu autor, impregnando-o de materialidade, entorpecendo-lhe as faculdades espirituais e condenando-o a imediatas ou ulteriores expiações na carne, as quais devem, cedo ou tarde, - e é esse o seu objetivo salutar - provocar o arrependimento, a que sucedem firmes propósitos de regeneração, tanto mais fácil de obter quanto não depende de estranhas vontades. Que o decaído, por um veemente impulso interior, abomine sinceramente os extravios com que a si próprio se infelicitou e tome o resoluto compromisso de não reincidir, e o perdão que suplicar lhe será deferido, bastando porventura - tal seja a firmeza da resolução e humilde submissão à prova - uma única existência para sua inteira purificação.

            Fora provavelmente esse o caso do paralítico. E Jesus, cuja lúcida visão espiritual penetrava o recesso das consciências, vendo que a dolorosa expiação produzira naquele espírito os necessários frutos de arrependimento e a firme deliberação de emenda, libertando-o do seu mal, não foi mais que o eco exteriorizado, a expressão verbal da Lei, que sabia satisfeita.

            Semelhante, senão por natureza idêntico, é o caso de Maria Madalena, com a diferença de que muito mais cedo se deteve ela no resvaladouro das leviandades, não necessitando que as torturas da expiação a fizessem retroceder, antes bastando que a aproximação do Mestre, pelo divino poder que dele irradiava, lhe despertasse na alma as capacidades morais adormecidas e produzisse aquele maravilhoso retorno, que a transformou de decaída numa das mais belas figuras do Cristianismo. O motivo dessa instantânea transfiguração radica no fato de que naquele espírito, que não soubera resistir às seduções do meio, para quem a deslumbrante beleza física fora o pretexto de queda e de falência, não havia pendores viciosos. Sucumbindo às solicitações da vaidade e deixando-se imolar pela concupiscência que de todo lado a assediava, nutria, entretanto, em seu coração um profundo, um enternecido amor pelos pobres e os pequenos, que largamente beneficiava com o fruto de suas deploráveis leviandades.

            É por isso que, dizendo "perdoados lhe são seus muitos pecados, porque muito amou," Jesus não aludia, como o têm acreditado espíritos superficiais, aos desvarios de que viera a ser ela própria a maior vítima - e poderia Aquele que era a pureza perfeita e imaculada fazer da impureza um título de merecimento? - mas ao amor desinteressado e espiritual que lia naquela alma e de que, sabia, eram objeto os sofredores e necessitados. Foi esse imaterial sentimento, fonte das mais elevadas manifestações do espírito e o mais fecundo propulsor do seu progresso, que tão depressa converteu Maria à lei do Cristo e tão intimamente com ele identificou o seu espirito.

            Mas, de todo modo, ela tinha em seu passivo os desregramentos dessa vida pecadora . Com uma palavra Jesus lh'os remitiu, Porque? - Porque o arrependimento - e era decerto profundo o de Maria Magdalena - atrai o perdão, e o perdão apaga a culpa.

            Definitivamente? Sem mais necessidade de prova ou de reparação? Tudo depende da intensidade do arrependimento e dos atos que se lhe seguem, tendentes a eliminar, assim da consciência do espírito como do aura que o envolve, toda impureza, todo vestígio das antigas culpas.

            No que se refere particularmente a Maria de Magdala, não somente, a partir de sua conversão, ela se fez uma fiel seguidora de Jesus, de cujos lábios não se fartava de ouvir as palavras de redenção e vida eterna, sendo uma das raras almas intrépidas que o acompanharam na hora trágica da crucificação, mas quis selar por um novo, decisivo triunfo sobra a carne - e aqui emitimos uma opinião inteiramente pessoal - os seus propósitos de regeneração.

            Se, com efeito, acompanhamos a história da igreja, mesmo depois que a tantos respeitos se divorciou do pensamento cristão, valendo-lhe contudo, para lhe assegurar uma temporária vitalidade, a presença em seu seio de grandes missionários que fulguraram de inusitado brilho nas obras da fé e caridade, vamos encontrar, ao fim do tenebroso período da Idade Média e em pleno alvorecer da Renascença, uma singular figura de monja, em quem parece reviverem os traços principais da Magdalena, encaminhados, porém, a uma nobre e redentora missão. Notável pela prodigiosa atividade que desenvolveu na fundação de institutos e recolhimentos destinados a abrigar das tentações do mundo as pessoas do seu sexo, era também dotada de uma impressionadora beleza física, de cujas seduções soube, todavia, triunfar, sobrepondo-lhe a inquebrantável firmeza de sua vocação religiosa, ao mesmo tempo caracterizada por um tão intenso e arrebatado amor ao Cristo que, não raro, - a história da sua vida o menciona - com ele se entretinha em colóquios espirituais, nos êxtases da adoração em que se transportava.

            Nessa figura, de um relevo tão casto e imaterial, não temos dúvida por nossa parte em admitir uma reencarnação da Madalena, a cuja personalidade assim se sobrepõe uma outra imaculada, que a redime e enobrece.

            É tempo, contudo, de analisarmos o outro aspecto das transgressões, a que atrás nos referimos, perpetradas pelo homem contra as leis divinas, isto é, as que são prejudiciais, não apenas a ele, mas ao próximo.

            Pertencem a esse numero todos os atos de maldade que, inspirados nos sentimentos de egoísmo, orgulho, inveja, ambição e semelhantes, pela natureza das impuras vibrações produzidas por esses desordenados movimentos psíquicos, não somente envolvem os seus autores numa entenebrecida trama fluídica, senão que, pelas repulsas que despertam, traduzidas em ressentimentos e rancores, desenvolvem correntes magnéticas similares, em que vítimas e algozes ficam presos como num circuito fechado.

            De que modo se podem quebrar esses verdadeiros grilhões forjados pelo mal e fortalecidos, do outro lado, pelo ódio? É preciso que o ofendido, pelo perdão, que importa completo esquecimento, desligue de si o ofensor, ou, para ainda utilizarmos a mesma figura, interrompa o circuito, que neste caso se fechará exclusivamente sobre o recalcitrante.

            Eis porque Jesus recomendava: "Concerta-te sem demora com o teu adversário, enquanto estás a caminho com ele; e empregando mais uma vez a linguagem figurada com que, para ser melhor compreendido, buscava de alguma sorte materializar o pensamento, imediatamente advertia: “para que não suceda que ele, adversário, te entregue ao juiz e o juiz te entregue ao seu ministro e sejas mandado para a cadeia. Em verdade te digo que não sairás de lá, até pagares o último centil (1)."

            (1) Mateus, V, 25 e 26.

             O que, em sua significação espiritual, quer dizer que, enquanto colocados na linha das peregrinações terrestres, permanecerem irredutíveis na mesma ordem de sentimentos, vítimas e algozes prolongarão o seu encarceramento na carne, em vez de o abreviar, a fim de aí expiar e reparar todas as suas impenitentes transgressões.

            Desde que, porém, o ofendido quebre, pelo perdão, os grilhões que o prendem ao ofensor, ao mesmo tempo que se emancipa da influência escravizadora de seus malévolos sentimentos, adquire o direito ao equitativo tratamento prometido pelo Cristo, isto é, faz jus ao perdão para as suas próprias culpas. Que ninguém há delas isento. Exceção apenas, com efeito, da imaculada figura de Jesus, haverá ou terá porventura havido, mesmo entre os grandes missionários, espíritos que não sejam mais ou menos falidos e se não encontrem mais ou menos distanciados do ideal de perfeição, que todos, entretanto, cedo ou tarde hão
de alcançar? E que é que lhes pode suprir a deficiência em tal sentido e ungi-los da pureza perfeita que lhes falta, senão a indulgência, o perdão de suas remanescentes debilidades, numa palavra, a transfusão da graça divina, que menos considera o merecimento do doado que a magnanimidade do Doador?

            Se o espírito, mesmo depois de arrependido, fosse condenado a voltar incessantemente à carne, para expiar e reparar até a última, até a menor de suas faltas e delíquios, se, por outros termos, entregue, de um lado, exclusivamente às suas próprias energias e, do outro, às inflexíveis reações da lei de causa e efeito, houvesse uma razão rigorosamente matemática entre os erros e fraquezas do individuo, cometidos por pensamentos, palavras e atos, e a obrigatoriedade de um a um os reparar na carne, quem haveria que lograsse, a fim se libertar do tenebroso círculo das encarnações terrestres? Onde a vida bastante e irrepreensivelmente santa, para não ser maculada sequer de uma tentação ou de um pensamento impuro? Se tal fosse, para o espírito, a condição de liberdade, quão poucos se porventura algum - poderiam alimentar a esperança de encerrar na Terra o ciclo de suas dolorosas peregrinações.

            É preciso, pois, que, respondendo às íntimas, às reiteradas aspirações de perfeição na consciência do espírito engendradas, a intervenção de um supremo e providencial fator lhe venha abreviar a proscrição, reduzindo o número das reparações, devidas menos aos ofendidos, igualmente réus, do que à Lei, que em seu beneficio se executa e que, satisfeita pela reconciliação do culpado com os seus ditames, não pode prolongar o seu rigor além do limite necessário à efetividade dessa mesma reconciliação.

            Porque a lei de que falamos, lei de vida, por isso mesmo que de amor, não pode ser um instrumento frio e implacável, segundo o conceito humano, - e daí a repugnância de alguns em admitir o castigo, a punição, pela ideia de vingança que sugere, quando a sua legítima significação é a de corretivo, ou advertência paternal - senão que, inspirada nos atributos do seu próprio Autor, é bem a lei do sentimento, representado naquele Pai que, na parábola do Filho Pródigo, Jesus nos apresenta e se comove com o arrependimento do que, pelo pecado, "era morto e reviveu, havia-se perdido e se achou."

             Esse tema, porém, dos atributos divinos pertence a outro capítulo, em que lhe procuraremos dar o conveniente desenvolvimento.         




Nenhum comentário:

Postar um comentário