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quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

21. 'O Cristianismo do Cristo e o dos seus vigários'


21

 “O Cristianismo do Cristo
e o dos seus Vigários...
           
Autor: Padre Alta (Doutor pela Sorbonne)
Tradução de Guillon Ribeiro
1921
Ed. Federação Espírita Brasileira
Direitos cedidos pela Editores Vigot Frères, Paris


            Todos vós, minhas Senhoras e meus Senhores, conheceis de nome esse monge, nascido em 1091 e morto em 1153, que pregou a segunda cruzada - 1147 a 1149 - e que nunca se pode consolar do desbarato dos Latinos pelos Turcos. Quis Deus guardar o triunfo para os cismáticos gregos, no ano 1912. Poucos dentre vós, porém, ao que suponho, terão lido a dissertação que ele dirigiu ao papa Eugênio - 1145 a 1153 - e que foi publicada sob o titulo nada significativo de De Consideratione - "Tratado da Consideração". Permiti-me, peço, que eu dela vos cite algumas passagens. 

            Livro II, capítulo VI, Seleção de Obras Místicas, por Buchon, págs. 345 e 346:

            "Pode-se, é certo, fazer bom uso do poder e do dinheiro, santíssimo padre. Podereis, sem dúvida, encontrar algum pretexto para granjear um e outro. Mas, não podereis tirar do apóstolo o vosso direito, pois que o apóstolo não vos pode haver dado o que não tinha. Ele vos deu o que tinha, isto é, a solicitude em cuidar de todas as igrejas, porém não a dominação, visto que diz em termos formais: "Não "pretendemos ter dominação sobre o clero, porquanto fomos instituídos para ser o modelo do rebanho" (I Petri, V, 3). - E, para que não suponhais que isto haja ele dito mais por humildade do que por verdade, a voz do Senhor se faz ouvir assim no Evangelho: "Os reis das nações as tratam com império e seus governadores tiram delas benefícios; não seja assim entre vós" (Lucas, XXII, 25). - Donde manifestamente se vê que a dominação é defesa aos apóstolos. Tende então, agora, a coragem de juntar a dominação ao apostolado. Ai está, parece-me, uma associação que vos é defesa. Portanto, se quiserdes possuir simultaneamente as duas coisas, ambas vos serão arrebatadas ... "

            E por muitas páginas prossegue S. Bernardo nessa condenação da dominação papal.

            Depois, retoma - Livro IV; capítulos 2 e 3 de Buchon, páginas 366 e 367:

            "Passemos a outras coisas. Pretenso pastor, andais todo coberto de ouro e todo rebrilhante de soberbos ornamentos. Que bem resulta daí para as vossas ovelhas? Se eu ousasse, dir-vos-ia que com tudo isso dais pasto aos demônios, não às vossas ovelhas. Tratava-as dessa maneira S. Pedro? E S. Paulo zombava assim dos fiéis? Vemos agora todo o zelo da cristandade aplicado unicamente em exalçar a dignidade dos seus chefes: dá-se tudo às honrarias e ao fausto, nada ou quase nada à virtude. Permiti, pois, que eu não vos poupe, a fim de que vos poupe Deus. É preciso que desaproveis tudo isso, se não quiserdes ser desaprovado por aquele cujo lugar ocupais: quero dizer - S. Pedro, a quem nunca ninguém viu carregado de pedrarias, nem vestido de seda, nem coberto de ouro, nem transportado sobre uma facaneia branca, nem cercado de soldados, nem acompanhado de uma multidão de oficiais... Em tudo isto, sois antes sucessor de Constantino, do que sucessor de São Pedro."

            Referindo-se, em seguida, à corte romana, à do século XII, que foi, dizem as Histórias Eclesiásticas, a mais gloriosa época do papado, continua o intrépido doutor:

            "Falarei inutilmente, mas falarei livremente. Porque inutilmente? porque os grandes da Igreja porão "o máximo cuidado em não me ouvir!"

            Ah! sim, acrescento eu: Deus mostrou que era do parecer de S. Bernardo, retirando ao papa o poder temporal e permitindo que os Romanos dessem hoje a si mesmos por chefe, não um cristão, mas um judeu. A cúria romana, como corretivo único, declara ímpios e apóstatas os cristãos que se lembrem de ser, quanto a este ponto, do parecer de Deus. Escutemos ainda S. Bernardo:

            "Os pontífices de outrora uma só coisa sabiam: "dar tudo o que tinham e dar-se a si mesmos...” todo o proveito que cogitavam de tirar dos que se submetiam à doutrina santa consistia em acharem meios de dispor os povos a servir a Deus perfeitamente. Era no que trabalhavam de todas as maneiras, muitas vezes com o coração despedaçado e o corpo em sofrimento, "com fome e sede, mal vestidos sob o frio", como diz S. Paulo. Mas, onde está agora essa moda antiga? Veio outra, algum tanto diferente, não é? As práticas do presente não são inteiramente as do passado. Confesso que o cuidado, a inquietação, o zelo, a solicitude ainda se fazem perceptíveis; mas, se não diminuíram, recaem sobre outros objetos. Sim, posso dar testemunho de que agora ninguém se poupa ao trabalho mais do que antigamente: o emprego do trabalho, o objetivo é que se tornaram menos admiráveis . Vedes, papa Eugênio, todos esses olhos postos sobre vós? Que é o que observam? Serão os vossos lábios, para melhor apanharem os vossos ensinos? Não! Olham as vossas mãos, e não sem motivo, pois que agora são as mãos que fazem todos os negócios do papado. Mostrai-me, peço-vos, em toda a vossa cidade, alguém que vos haja reconhecido por papa, sem a intervenção ou a esperança de alguma soma em dinheiro. E esses protestos, que vos fazem todos os prelados romanos, do seu devotamento ao vosso serviço, têm outro fim que não seja obter autoridade para prejudicar? Peço acrediteis que conheço bem o gênio e a maneira de agir desta nação. Hábeis para o mal, incapazes para o bem; odiosos ao céu e à Terra, por terem posto mãos sacrílegas sobre uma e outro; sem piedade real para com Deus, exploradores das coisas santas; rixentos e invejosos uns dos outros, hostis aos forasteiros; querendo que toda gente trema diante deles; infiéis aos seus superiores e insuportáveis aos seus inferiores; importunos, desavergonhados, até obterem de vós o que desejam; ingratos, desde que o tenham obtido, ninguém os pode amar, porque eles a ninguém amam... Como vedes, sei qual é a vossa camarilha: os incrédulos e os destruidores formam a vossa companhia; sois guardador oficial de lobos e não de ovelhas. Convertei-vos, peço-vos, para que não vos pervertam.

            Mas, como transformá-los?

            Confesso que até ao presente esse povo pareceu extremamente endurecido e indomado. Estais, porém, certo de que eles são absolutamente indomáveis? Se tem uma frente dura, endurecei a vossa ainda mais do que a deles: não há nada tão duro que não ceda ao que o é mais. Se tendes procedido assim, sem nada conseguir, ainda vos resta fazer uma coisa: Deixai a morada dos Caldeus!" é o que Vos clama o profeta. Persuado-me de que não vos arrependereis do vosso banimento, tomando para vossa habitação a terra inteira, em vez de uma cidade apenas." (Livro IV, capítulo III, tradução de Buchon, pág. 363).

            Porém, não! Volto ao meu primeiro ponto: a vós mesmo é que deveis imputar o que fazem aqueles que vos cercam, pois eles nenhum outro poder têm, senão o poder que lhes destes, ou que os deixastes tomar. Corre-vos por isso o dever de compordes a vossa comitiva, chamando para tão importantes funções, não esses jovens, mas os velhos, verdadeiros Anciãos do Povo, a exemplo de Moisés: velhos, quero dizer: pela sabedoria e pela virtude, mais do que pelos anos, e não apanhados unicamente ao vosso derredor, mas buscados em todas as partes do mundo, porquanto, afinal, em todas as partes do mundo devem ser escolhidos aqueles que hão de julgar das coisas que interessam ao mundo inteiro... A não ser assim, os últimos tempos porão a nu o mal interior que os primeiros tempos haviam ocultado... Muito vos enganais, com efeito, se credes que a vossa autoridade apostólica promanou de Deus para ser única, não apenas soberana. Toda pessoa, diz o Livro Sagrado, deve ser submissa às potências superiores." Não diz: "à potência suprema", como se fosse uma única; mas': "às potências superiores", como sendo muitas. O vosso poder, pois, não é o único instituído por Deus; há outros menores, inferiores, que também o são. Faríeis um monstro se, destacando um dedo da mão, o ligásseis à cabeça. O mesmo se dará com esse corpo, que é a Igreja de Jesus-Cristo, se colocardes os seus membros de modo diverso do em que ele os dispôs; visto que, afinal, não imagino cometais o erro de crer que não foi Jesus Cristo quem estabeleceu na sua Igreja, como diz S. Paulo, uns para serem apóstolos, outros para serem profetas, outros evangelistas, doutores e pastores outros, para trabalharem no criar santos e em construir o corpo da Igreja ... Oh! infeliz esposa de Jesus Cristo, que te achas presentemente confiada a condutores que não se envergonham de guardar para si exclusivamente o que, segundo a ordem determinada por Deus, reverteria para a Igreja inteira!" (Livro III, capítulo V, págs. 362, 364).

            Mas, basta destas citações, que eu poderia prolongar mediante outras ainda mais desagradáveis. As que aí ficam são suficientes para demonstrar que não constitui impiedade o não se fecharem os olhos às chagas da Igreja, nem constitui blasfêmia o denunciá-las ao único médico que as pode curar, porquanto, na Igreja de Jesus Cristo, o médico do clero é o leigo, como o médico do leigo é o padre: Mandavit Deus unicuique de proximo suo - "Deus deu a cada um o encargo do seu próximo", diz o Livro Sagrado chamado precisamente Eclasiástico (XVII, 12).

            Com efeito, a desgraça das enfermidades que os profetas e todos os santos denunciam na Igreja Católica é que os enfermos se apegam às suas enfermidades. Não serão, pois, a corte romana, nem o clero que reformarão a corte romana. Eis porque os leigos tinham voto na Igreja, no primeiro século depois de Jesus Cristo, porquanto, afinal, não é um livro herético, mas o livro sagrado dos Atos dos Apóstolos que nos mostra S. Pedro pedindo a opinião de todos os fiéis, a fim de eleger, dentre eles, um substituto para Judas. E sempre, nos dez primeiros séculos, e disso dá testemunho a história autêntica, os bispos foram eleitos pelo sufrágio universal, não apenas dos padres, mas dos leigos. Sabeis, por exemplo, que S. Martinho foi nomeado arcebispo de Tours, pela vontade do povo, que violentou os bispos e os forçou a renunciar àquele que queriam nomear. Os leigos, pouco a pouco, se deixaram despojar de todo direito, de toda intervenção, mesmo a mais devotada, nos negócios da Igreja. O deplorável resultado, que já no século XII S. Bernardo denunciava, com o tempo se agravou e os católicos, ainda os mais corajosos na defesa de todos os seus outros direitos e no cumprimento de todos os seus outros deveres, se dobram covardemente - peço perdão do termo - ante a usurpação eclesiástica que lhes proíbe falar e agir e só lhes concede uma função, a de obedecer e calar. Esse o grande mal donde nascem todos os outros, na Igreja Católica. Já não estamos, contudo, nos séculos da Inquisição e não é preciso ter a coragem de um Savonarola ou de um Luís de Lyon para ousar agir e falar como se pensa, tanto mais quanto, entre os católicos intelectuais e mesmo entre os padres, são legião os que pensam hoje o que São Bernardo ousava dizer.

            - Mas, se esses ousarem falar, como faço esta noite, não serão tratados como modernistas, como protestantes, etc., pelos beneficiários do mal que eles tiverem a ousadia de denunciar? não serão desconsiderados aos olhos dos ignorantes que, na Igreja, como alhures, são em número considerável?


            Ah! sim! É essa precisamente a tática desde que livros e revistas se tornaram objeto de exploração. Em vez de refutarem, injuriam: afirmar ou negar basta, sem necessidade de prova autêntica do que avançam. Um grande pontífice de não sei que revista judaica, um destes Dias, me censurava o ter ousado pretender que o Talmud é posterior ao Evangelho. Não é que ele ignore que mesmo a primeira parte do Talmud, a Michna, só ficou terminada depois do século II da nossa era (25); é que ele sabe que o seu público o acreditará sobre palavra e disso se aproveita. Os rendeiros do clericalismo se utilizam mais habilmente da confiança de seus fiéis: criaram uma palavra, da qual fazem ficha de excomunhão: "modernista, liberal, protestante", etc. Logo que os pregoeiros públicos da ortodoxia, "com os olhos postos na mão pontifical que os tem de pagar", como diz S. Bernardo, lançam o qualificativo oficial sobre os adversários da exploração ou da opressão na Igreja, a causa está julgada. Porque, como também o diz São Bernardo, "não é da cabeça, mas da cauda do escorpião que se deve temer" (26).

            (25) Rabino Elias Soloweyczyk - "A Bíblia, o Talmude e o Evangelho", pág. 7, nota 1.
            (26) Livro IV, 4, pág. 369

            Não sei se em História Natural é exata essa asserção; na história da Igreja, porém, é tristemente justa.




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