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terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Afinidades



Afinidades

            Conta-nos Tolstoi que, à beira de um caminho, formara-se pequena roda de curiosos em torno do cadáver, em putrefação, de um velho cão. "Decerto, teve a morte de todos os cães ladrões: foi justamente executado", dizia um.

            "Era um cão danado, e foi justo matá-lo", ponderava outro.

            "Como fede o imundo!", dizia terceiro, "e os patifes que o mataram não sepultaram; deixaram-no envenenando os ares com seus pestíferos miasmas! Eram da mesma igualha do cão vadio!"

            E pragas e imprecações e blasfêmias inspirava em todos os transeuntes aquele espetáculo. 

           Eis senão quando alguém se aproxima muito mais, curva-se, contempla embevecido os dentes do cadáver; aproxima-se ainda mais e exclama, encantado: "Como são lindos os seus dentes! Que simetria maravilhosa! Que marfim perfeito! Esta dentadura é um poema do Criador!" 

            Olharam todos. Quem seria aquele homem que encontrava a beleza, a harmonia, Deus, num cadáver em putrefação! Seria um anormal, um monstro sem olfato, sem sentimentos e sem sentidos!

            Não; era o Cristo, o enviado de Deus, aquele que só tem afinidades com o belo, o justo, o harmonioso, o sublime e, por falta de ressonâncias em sua alma, não vibra com o mal, com as coisas inferiores.

            Até aí o resumo do conto de Tolstoi, mal feito, talvez.

            Seja assim também a nossa alma. Saiba descobrir algo de bom e de belo em todas as iniciativas de nossos irmãos. E, partindo desse 1% de bem que exista em 99% de mal numa obra, não a destrua, mas trabalhe para elevar e aumentar o bem a 2%, certo de que o mal é passageiro e só o bem é eterno. Esqueça a parte má e colabore com a boa, porque esta tem que crescer e dominar um dia pela lei natural do progresso humano. Que importa seja longo e penoso o trabalho, se a eternidade é nossa!

            Todas as nossas obras retratam seus autores: têm muito de mal e pouco de bem; mas uma obra má pode ser apenas andaime para outra menos má e assim a pouco e pouco chegaremos às boas obras. Só não podemos ser mornos, temos que ser quentes ou frios, porque esta é a lei e aquele que quiser salvar; a sua vida, a perderá. Só uma atitude nos é proibida e seria o mau exemplo, seria a ociosidade: a de ficarmos à beira do caminho, maldizendo dos que passam sob o peso de suas culpas e faltas, tentando dissuadi-los de todas as tentativas e a convencê-las de que antes de tudo temos que ganhar o reino de Deus, na convicção de que todas as outras coisas nos serão dadas de acréscimo. Eles não pretendem receber, não se sentem com direitos adquiridos, mas somente cheios de compromissos assumidos com a lei.

            Há um infinito de trabalho material a fazer antes de passarmos à obra mais elevada de construirmos o reino de Deus em nossos corações, como ideal superior. Estamos imitando e reproduzindo obras da Igreja? Porque não imitar tudo de bom que foi feito pelos nossos antecessores? Só não devemos imitá-los no fanatismo religioso, e não será o primeiro passo para esse fanatismo o só vermos em todas as suas obras o cadáver do cão e não percebermos nalgum lugar também o marfim daquela dentadura?        

            Há grandes erros no Cristianismo organizado em Igrejas, mas foi ele que nos conservou o texto do Evangelho e nos preparou os grandes Mestres que hoje nos dirigem caridosamente. Lacordaire, Vicente de Paula, Antônio de Pádua, Emmanuel, Venâncio Café, Fenelon, Lamennais, Marlot, Adolfo (bispo de Argel), Vianney (cura d'Ars), Santo Agostinho, São Francisco Xavier, todos foram padres católicos e hoje são nossos caridosos Guias. Quantos Espíritos superiores cumpriam sublimes missões na Igreja! Porque fugirmos de tudo quanto se pareça obra da Igreja, quando tais obras foram realizadas por estes mesmos Espíritos que hoje são nossos Guias?

            Seria lamentável cegueira, fanatismo insensato, repudiarmos por espírito de seita as obras boas realizadas pelas Igrejas. Não podemos deter-nos somente nas obras semelhantes às da Igreja, mas em muitos casos seria absurdo ou crime não continuarmos a obra da Igreja para os serviços de assistência material, sob pretexto de que nossa missão é mais elevada. Sem dúvida, a missão do Espiritismo é eterna e tempo virá em que se parecerão ridículos os serviços de assistência que hoje fazemos, por não necessitarmos mais deles; mas antes de chegar esse tempo, seria crime não nos movimentarmos, não colaborarmos até mesmo nas obras de iniciativa católica ou protestante ou leiga que tenham por finalidade socorrer os necessitados.

            Por mercê de Deus, o Espiritismo não forma uma casta, uma seita à parte da Humanidade; porque tem tarefas a cumprir em todos os meios sociais: nos templos de todas as seitas, nos hospitais, nas escolas, nas oficinas, nas penitenciárias, nos lares, nas cidades e nos campos, com ou sem o rótulo espírita.

            Espiritismo é revelação do amor universal que tem de ligar todos os seres. Os Espíritos não se comunicam somente em nossos Grupos; sabemos que eles nos falam igualmente dos púlpitos das Igrejas e da tribuna das instituições leigas, pela pena dos pensadores e pela coluna dos jornais, pela boca dos reformadores sociais e pelas descobertas da Ciência. Rótulo é limitação e limitação é divisão e divisão é ódio e enfraquecimento. Tentemos conservar o espírito da Doutrina acima das trevas de seitas. Não aspiremos a formar uma grande Igreja, mas a ajudarmos grandemente à Humanidade com todas as Igrejas ou sem nenhuma Igreja. Em vez de um grande movimento espírita, pensemos em um grande movimento regenerador, mesmo que o rótulo espírita não tenha que aparecer.

            Compreendamos que a luz nunca foi e jamais será monopólio de uma Igreja ou de uma Escola. A Nova Revelação anula o espírito de seita e estabelece a lei das afinidades. Os Espíritos superiores podem achar mais afinidade em um livre pensador, em um filósofo ou pregador católico, do que num médium fechado pelos preconceitos, e, então, servir-se-ão de um daqueles e não deste para transmitir ensinos aos homens.

            Sabemos que durante mais de meio século os médiuns na Inglaterra e nos Estados Unidos estiveram fechados a qualquer mensagem que confirmasse a reencarnação, mas durante esse tempo muitos pensadores não espíritas, naqueles mesmos países, divulgaram com outros rótulos o ensino da lei das reencarnações.

Ismael Gomes Braga
Reformador (FEB) Abril 1946



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