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quarta-feira, 7 de novembro de 2012

O Pavão de Penas Brancas



O Pavão
de Penas Brancas

           
            Faz muito tempo, na velha Constantinopla, vivia um sultão poderosíssimo, despótico e presunçoso. Chamava-se Salim-al-Soliman e se dizia descendente do grande e famoso califa de Bagdá, Harun-al-Raschid, cuja sombra augusta conserve Alá bem guardada nos jardins floridos do paraíso, entre as mais lindas e ardentes huris...

*

            Um dia, à hora vespertina, quando o muezim convocava os fiéis para o cumprimento de seus deveres religiosos, Salim-al-Soliman, que discutia com alguns sábios certos pontos exegéticos do Alcorão, mandou chamar a palácio o mufti. Este, entregue aos exercícios espirituais, não atendeu imediatamente à ordem, a fim de não interromper a prece a Alá. Sabedor disso, o sultão determinou que o mufti viesse à força, ainda que preciso fosse perturbar a oração. E assim foi feito. Dentro em pouco, diante do irascível Salim-al-Soliman, se achavam os sábios, o mufti, o imã da mesquita de Omar-Abud e o grão-vizir Arbzura. Pretendia o sultão solucionar problemas que escapavam à sua inteligência apoucada e escassíssima cultura. Corajosamente, o mufti lhe fez ver a conveniência de estudar melhor os suras do Alcorão, sem o que não penetraria a essência da doutrina deixada por Maomé, que Alá tenha sempre em seus braços. Colérico, Salim-al-Soliman ordenou que o mufti, o imã e os sábios fossem postos a ferros, nas masmorras do palácio. Isto feito, baixou um édito, modificando os versículos do Livro Sagrado do Profeta.

             "- Sou mais sábio que todos os sábios, maior que Maomé e, portanto, ninguém está mais autorizado do que eu a compreender as Palavras Santas de Alá!"

*

            O sacrilégio foi logo de todos conhecido. Os fiéis estavam consternados, mas temiam a truculência de Salim-al-Soliman, que achava a ação mais simples e natural deste mundo cortar cabeças. As cimitarras tinham sempre muito que fazer, durante os momentos de cólera do tirano... Apareceu, porém, na almadena da mesquita, de Omar-Abud, o khatib Khaled-Bram, que até hoje é venerado onde quer que haja um muçulmano. Destemerosamente, profligou os atos de Salim, levando aos mais recuados pontos de Constantinopla a eloquência de sua palavra de fogo. Não tardou que o déspota tomasse conhecimento da ocorrência, por intermédio do intrigante vizir Arbzura. Khaled-Bram foi preso e arrastado à presença do sultão. Ao penetrar os luxuosos salões do palácio, o altivo Khaled fez a tradicional saudação muçulmana, tocando com os dedos da mão direita a testa, a boca e o peito.

            E disse:

            "-  Mismillah-er-rahman-er-rahim!” - acrescentando em seguida: "A graça de Alá esteja convosco, poderoso senhor, mas que não me abandone ..."

            Embora estranhando estas últimas palavras do pregador da mesquita de Omar-Abud, o monarca admirou-lhe o atrevimento. Logo, porém, interpelou-o com severidade sobre o que dissera aos fiéis. Sem se perturbar o mais mínimo, Khaled-Bram respondeu com altiva serenidade:

            "- Augusto soberano! Acima de todos os reis da Terra, dos sultões mais fortes, dos príncipes mais belicosos, acha-se o santo nome de Alá! Ele é mais belo, mais rico, mais forte, mais sábio, mais poderoso do que todos os monarcas juntos, porque Ele é senhor da Terra e do Céu, senhor do nosso Espírito e do nosso corpo, senhor dos nossos mais íntimos pensamentos. Se hoje, grande Salim, dispuserdes que um golpe de alfanje faça rolar a cabeça deste misérrimo khatib, agradecerei, contente, o premio de Alá e louvarei toda a beleza do Alcorão, porque não há felicidade maior para o crente do que o sacrifício por Aquele que tudo é!"

*

            Como que magnetizado, o sultão ouviu em silêncio as palavras audazes de Khaled-Abud.
           
            E o pregador continuou:

            "- Salim-al-Soliman, descendente ilustre do nobre Harun-al-Raschid, que foi modelo de bondade e sabedoria: podeis dispor do meu corpo, mas não penetrareis jamais o fundo dos meus pensamentos, nem conseguireis sequer deter o voo de minha alma.  Assim como ninguém sabe ao certo quando a Santa Kaaba caiu sobre o deserto árabe, assim também vós, grande monarca, não sabeis a sorte que vos espera... Do mesmo modo que Alá permitiu que Maomé, com os seus trezentos fiéis, derrotasse novecentos inimigos na batalha de Bedr, concederá que a minha insignificância triunfe da vossa suprema autoridade, que só pode ir até à minha morte. Não irá além disso..."

            Antes que Salim pudesse articular qualquer resposta, o khatib prosseguiu, no mesmo tom impressionante:

            - "Está escrito que a palavra de Alá será integralmente cumprida, nem que o mundo seja subvertido. O que fizestes, encarcerando o mufti e o imã, perturbando o serviço religioso, foi um sacrilégio, senhor; foi um desrespeito ao Sábio dos Sábios; foi uma afronta a Alá. Deveríeis prosternar-vos diante da Santa Kaaba, grande sultão Salim- al-Soliman, por não ter vindo dos céus um raio que vos fulminasse. Foi mudado o kiblah até que sejam desagravados o mufti e o imã. Sois feroz, não apenas porque o vosso coração contenha fel vivo, mas também porque a vossa vaidade é imensa. Quereis ser tão grande quanto o nobre Harun-al-Raschid, mas, perto do querido e chorado califa, que os perfumes suaves do paraíso envolvem por vontade de Alá, não sois sequer uma sombra... Cortai a minha cabeça, senhor, se quiserdes; porém, esta é a verdade. Estrangulai a vaidade que vos corrói a alma, que vos transforma num verdugo do povo, que vos amesquinha à condição dum infiel. Matai-me, torturai-me, se vos apraz, senhor; mas lembrai-vos de combater sem tréguas a presunção que vos cega e enlouquece. Não há senão um Deus, que é Alá; e Maomé é seu Profeta!"

*

            De súbito, o sultão estremeceu, ficou rubro, os olhos faiscantes de ira. E exclamou com estrépito, cerrando os punhos: "Imundo cão vadio! Como ousas insultar-me?! Eu, o mais sábio e mais poderoso dos monarcas, não sei como consenti ouvir dos teus pútridos lábios tantas inconveniências! Vizir Arbzura! Quero que este miserável khatib seja açoitado em praça pública, até que o sangue jorre de seu corpo nojento, Depois, mande besuntar-lhe as chagas com mel grosso, para que os tavões se deliciem com o seu sofrimento, Por fim, decepem-lhe a cabeça com um golpe seguro de cimitarra! Já! Fora daqui com esse cão vadio!"

            A uma ordem do vizir, os janíseros se dispunham a arrastar o khatib Khaled-Bram para a tortura, quando este, erguendo os braços, fê-Ios estacar involuntariamente. Dirigindo-se pela última vez ao sultão, o pregador apostrofou-o com veemência:

             "- Poderoso, poderosíssimo Salim-al-Soliman, descendente do boníssimo e sapientíssimo Harun-al-Raschid, cujo nome vive embalsamado na memória de todos os muçulmanos: Podeis castigar como vos aprouver minha desditosa carcaça, Alá está comigo, eu o sinto, e minh'alma será perfumada pelas flores do paraíso, onde Maomé me aguarda de braços abertos. Irei feliz, Salim-al-Soliman, porque a minha consciência é limpa como a leira dos Livros Sagrados do Profeta. Destruí este vaso gasto pelos anos, porque o meu Espírito irá para os altos páramos em que Alá tem seus jardins de ouro e pedras preciosas. Ouvireis duas vezes o cantar o Ababillo, o pássaro sagrado, no momento exato da minha partida da Terra. Depois do segundo canto do Ababillo, um grande acontecimento recordará minha morte. Começo a ouvir as vozes dos eleitos de Makoraba e elas me anunciam que Alá glorificará o meu sacrifício, dando ao homem mais vil, mais estúpido e vaidoso de toda a Terra a forma
dum pavão de penas brancas e bico dourado!.. Alá se compadeça do vosso destino, Salim-al-Soliman!"

*

            E tudo sucedeu conforme a predição de Khaled-Abram.  Após o segundo canto do pássaro sagrado, o sultão desapareceu misteriosamente do palácio e até hoje ninguém tem notícias dele. Em compensação, foi visto a percorrer os salões monumentais um lindo pavão de penas brancas... Quando os muçulmanos ouvem esta lenda, seus olhos brilham e seus corações pulsam mais fortemente, porque todos se lembram do khatib de Omar-Abud, que Alá guarde em seu seio..."


                                           José Brígido (Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Agosto 1948

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