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sábado, 24 de novembro de 2012

Fazer primeiro por ti...




 Fazer 
primeiro por ti...


                Mussafir era um rapaz que somente pensava em si. Não que ele fosse propriamente mau, mas revelava profunda indiferença por seus semelhantes e seguia o preceito cínico de Mirabi-el-Fanur, que costumava dizer a seus discípulos:

            - Faze primeiro por ti que Alá te ajudará ...

            Por isso, Mussafir ia-se tornando egoísta e frio, pois o egoísmo corrompe as boas qualidades do espírito e faz repontar no caráter do homem vícios e defeitos difíceis de erradicar.

            Naquele dia, topara o rapaz com o velho Hiraim, a quem chamavam "o faquir", homem sem riquezas materiais, mas dotado de bondoso coração, como outro igual talvez não se encontrasse na Arábia de seu tempo. Ao atravessar a rua esburacada, Hiraim pisou em falso e caiu, torcendo o pé. Ao ver Mussafir, chamou-o:

            - Bom rapaz, vem cá! Ajuda-me a chegar a casa.

            Sem se deter, Mussafir olhou-o com indiferença e respondeu:

            - Faze primeiro por ti que Alá te ajudará ...

            E seguiu seu caminho sem olhar para trás. Entretanto, Hiraim, sem revelar mágoa, retrucou:

            - Alá há de te ouvir e eu lhe peço que retifiques os sentimentos senão terás uma velhice amargurada por lágrimas e dores... E será triste, se isso acontecer...

*

            Mussafir ignorava a verdadeira personalidade de Hiraim. O velho faquir possuía dons especiais, que lhe davam certa ascendência sobre o comum dos mortais. Dotado de vidência, pudera ver que Mussafir andava cercado por entidades sombrias, pois sua alma ia lentamente perdendo o róseo tom da inocência e obscurecendo ao contato de impuros companheiros invisíveis. Hiraim compadeceu-se de Mussafir e com extrema dificuldade se dirigiu para a mesquita de Arbnachar, abriu a almocela e sobre esse tapete formulou uma prece ao Criador de todas as coisas...

            Mussafir deitara-se cedo. A noite quente e abafada forçava ao repouso e ele, que sentia o corpo quebrantado, como se lhe houvessem dado forte sova com varas dos famosos marmeleiros de Benir-Adib, fora para o leito na esperança de adormecer sem demora. De quando em quando passava a mão pela testa aljofrada de suor frio e suspirava quando lhe acorria à mente o episódio do encontro com Hiraim. Era curiosa a insistência com que ele se lembrava do velho desconhecido. Sentia o coração opresso, como se o mundo estivesse para desabar por cima de sua cabeça. Lá fora, a noite negra e profusamente estrelada parecia o tapete marchetado de belos diamantes do califa Arbjura, vindo especialmente de Bagdá para lhe ornar o palácio suntuoso.

            Pensativo, em seu leito, sentiu vontade de chorar. Mas, chorar por quê? Um homem de sua têmpera não chora... O tempo foi correndo depressa, até que Mussafir pressentiu a chegada do sono. Nessa ocasião, porém, desejou sair do quarto e espairecer um pouco ao ar livre. Levantou-se, espreguiçando-se. Sentia-se mais leve e mais tranquilo. Chegou à janela, olhou o céu e, inadvertidamente, voltou-se em direção ao seu leito. Espantou-se com o que via: seu corpo se encontrava deitado ali, em profundo sono! Após os primeiros instantes de estupefação, começou a sentir curiosidade pelo fato. Aproximou-se e tocou com o dedo o próprio corpo. Sorriu, achando graça da situação em que se via... Como podia ser isso? Como é que ele poderia estar dormindo e acordado ao mesmo tempo? Nesse instante, percebeu que alguém o chamava do outro lado da janela. Era o velho Hiraim. Mussafir não revelou surpresa. Até parecia que haviam combinado o encontro. Ia dirigir-se à porta; para sair, quando o faquir lhe fez sinal para que viesse à janela. Sairia por ali.

            - Vem comigo, rapaz. Não há perigo algum. Deixa teu corpo em descanso e vem tu, em espírito, acompanhar-me. Podes volitar e passar através da parede. Não há perigo algum. Segue-me sem receio, porquanto precisas ver alguma coisa que será útil a ti mesmo...

            Intrigado a princípio, Mussafir acabou por obedecer cegamente a Hiraim. E ambos partiram pelo espaço afora:             

            - Vou levar-te ao éden. Depois verás os campos de aprendizado, a fim de que vejas como a vida que os homens levam na Terra nem sempre está conforme com as necessidades que eles têm. Daí a instantes penetravam o paraíso anunciado a Maomé, na gruta, pelas vozes do Alto. Mussafir tremia de emoção, extasiado pelo que de felicidade ali se vislumbrava. Hiraim, todavia, quebrou-lhe o êxtase, dizendo-lhe:          

            - Como vês, aqui não se encontram as huris anunciadas para aqueles que conquistam as graças de Alá. O Todo Poderoso reserva-lhes recompensa muito mais elevada, mas é imprescindível que se desliguem completamente de todos os sentimentos inferiores e aprendam a amá-lo com a sinceridade com que O amou Rabia, aquela maravilhosa mulher maometana, verdadeiramente santa pela bondade de seu coração e por suas virtudes peregrinas...

            Para ganhar o Aliun, o paraíso predito por Maomé, meu rapaz, deve-se aprender a amar a Deus com pureza. Amá-Lo como O amava Rabia. E ela cantava esta prece de ternura e fé:

           "Oh Alá, Alá! Se Te adoro com medo do Inferno, queima-me no Inferno! Se Te adoro na esperança do Paraíso, exclui-me do Paraíso! Porém, se Te adoro pelo teu próprio amor, não me afastes da tua eterna beleza!"

*

            Quando Hiraim acabou de falar, Mussafir se achava caído de joelhos, enternecido. O velho fê-lo erguer-se, doutrinando-o:

            - Ninguém ama o Pai, se não aprende primeiro a amar o próximo, Mussafir. Abandona o preceito de Mirabi-al-Fanur e volta teu coração para o mundo. Aquele que não se compadece de seu semelhante e não o ajuda, é como que um aljube envenenado, cujas águas não têm serventia...
           
            Não mostrarei o Inferno, porque, na realidade, ele somente existe na consciência do homem afastado de Alá. Mostrar-te-ei, contudo, os campos de aprendizado onde os Espíritos podem, em suas horas de lazer, dedicar-se a trabalhos de auto retificação moral.

            Era intensíssimo o movimento das colônias visitadas. Espíritos de diversas cores iam e vinham, empolgados por suas tarefas de renovação. Uns claros, bonitos, atraentes; outros, negros, pavorosos, repulsivos. Para não ser prolixo, Hiraim limitou-se a dizer que a beleza e a delicadeza das cores dependiam, em grande parte, da elevação moral de cada um.

            - Nós mesmos, neste recinto, podemos ver nossa imagem refletida diante de nós e avaliarmos da nossa situação em face da vida que levamos.

            Mussafir, automaticamente, procurou contemplar o seu Espírito. Diante dele pairava uma névoa pardacenta, com largas manchas negras. Triste como a viúva Khadijah, ao ser desprezada por Kutam, o Maomé, o pobre rapaz ergueu os olhos, súplice, para Hiraim, mas cobriu-os, logo, com as mãos trêmulas, tal a claridade que envolvia o Espírito do velho faquir. Mussafir sentiu-se tonto e foi perdendo a noção das coisas...

*

            Despertando em sobressalto, sentou-se no leito e olhou ao redor, como que procurando Hiraim. Nada se alterara. O luar banhava o quarto deserto e silencioso. Naturalmente sonhara, tivera um pesadelo.  Todavia, o resto da madrugada ele a passou em vigília. Parecia-lhe ver a imagem de Hiraim e ouvir-lhe a voz lenta e suave.

*

            Tão cedo lhe foi possível, procurou pela cidade o faquir. Resolvera renunciar às lições de Mirabi-al-Fanur, arrependido que estava de seu procedimento da véspera. E ao encontrar Hiraim, caiu-lhe aos pés, murmurando, entre soluços:

            - Perdoa-me! Não quero ser como a planta alulab, que vive rente ao chão, em lugares úmidos e sombrios... Ajuda-me, Hiraim, a merecer as graças de Alá!

             Sorrindo compassivamente, o velho alisou lhe a cabeça e disse com ternura:

            - Faze primeiro por ti que Alá te ajudará ...




por José Brígido (Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Novembro 1948


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