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sexta-feira, 30 de novembro de 2012

10. "À Luz da Razão" por Fran Muniz




10
“À Luz da Razão”

por   Fran Muniz

Pap. Venus – Henrique Velho & C. – Rua Larga, 13 - Rio
1924


A CONFISSÃO



            Estudemos agora o preceito da Confissão. Mas, como é de boa escolástica que uma definição preceda sempre a matéria em estudo, dessa parte nos desobrigamos, com pobreza de imaginação embora, definindo a confissão com compará-la a uma mina aurífera (hoje já quase esgotada) que abarrotou de riquezas as arcas da Igreja Católica.

            Dir-se-á, talvez, que nada se paga pela confissão, o que, aliás, não é caro se, como afirma a igreja, ela é o veículo da salvação: no entanto, a demonstração que vai seguir provará o contrario e, mais uma vez se confirma o proverbio: “As aparências iludem.”

            A Confissão foi instituída muito depois da era de Cristo, em concílios organizados pelos maiores talentos da época. As sutilezas que revestem tal dogma denunciam, evidentemente, a refinada astúcia de seus organizadores. Em se declarar que “denunciam evidentemente” vai muita força de expressão, pois é certo que a humanidade, na sua grande maioria, deixou-se ficar até hoje intrujada pelo disfarce, sem poder penetrar-lhe o sentido oculto.

            A igreja adaptou mais esse preceito, porque João Batista disse:

            “Confessai vossas culpas uns aos outros e orai uns pelos outros para que sejais salvos.”

            Convém notar que o batismo de João era precedido da confissão em público e em altas vozes para que fosse provocado o sentimento de humildade. Isso tinha por mira evitar que os homens cometessem outras faltas a fim de não serem forçados a confessa-las em público, o que acarretaria o opróbrio e a reprovação ao culpado. Por isso o Precursor ensinou que “se confessassem uns aos outros”.

            Daí para que se confessassem somente aos padres existe uma diferença colossal como a que há entre um papa e um cristão.

            Não obstante, a igreja resolveu tomar a si a exclusiva autoridade de Confessar e viu-se seriamente embaraçada para se arrogar tal direito. “Mas, com o concurso dos intérpretes e santos padres, foi traduzido que “uns aos outros” foi dito para suavizar a prática do preceito da confissão. Assim entendeu um dos mais abalizados expositores lembrando que o padre  também é um homem como os outros (o grifo é nosso) se bem que pelo caráter sacerdotal está acima do leigo e, portanto, só ao padre se deve a gente confessar, pois ele tem o poder de perdoar" (1)

            (1) Goffiné - Man. do Cristão, pago 499.

            Como se vê, a coisa pegou e, assim, a igreja substituindo o sentido de mais uma lição evangélica, a seu bel-prazer e em beneficio próprio, estabeleceu também um regulamento para os confessandos, de cujos deveres, damos aqui somente a parte mais interessante:

            “Marido e mulher: São obrigados a confessar ao padre se tem faltado à fidelidade e amor conjugal e mais deveres que se obrigam pelo sacramento do Matrimônio. Se vivem separados e qual a causa. Se tiveram ciúmes e formaram juízo temerário um do outro, sem fundamento. Se se maltratam de palavras e conservam má vontade um ao outro. etc. etc.” (1)

            (1) Obr. cit. pág. 80.


            Estas obrigações foram impostas pelo Concílio Tridentino, visto que, continua o autor citado. “Deus em sua infinita misericórdia aprouve entregar à Igreja as chaves do Céu, portanto, todos os pecados confessados ao sacerdote, serão por ele perdoados pelo poder das chaves. (2)

            (2) Obr. cit. pág. 211.

            Não percamos mais tempo com esta presunção tola, deixando, ao leitor, o livre arbítrio de refletir sobre esses deveres de confissão, impostos a marido e mulher. Certamente não haverá ninguém de bom senso que admiti-la uma mulher casada revelar ao padre, tais particularidades intimas. E, ainda que, por absurdo, se tolerasse isso, quais os conselhos e consolações que essa mulher poderia receber a sós com um homem, num recanto de um templo?

            Dir-se-á, talvez, que há muitas mulheres virtuosas. do mesmo modo que muitos sacerdotes honrados, e com isso concordamos; no entanto, também se não pode negar haver grande número de confessores hipócritas que vivem de mãos ao peito, olhos languidos no Céu, enquanto todo o pensamento se enlameia na corrupção. Além disso, “a carne é fraca.”

            A convivência produz a simpatia, e esta, muitas vezes não resiste aos perigos e manhas do lobo esfaimado. Assim, o mais acertado será evitar semelhantes preceitos que, além de inúteis, são indecentes. Lembremo-nos do adagio: “Antes prevenir do que remediar.”

            Presentemente este dogma se acha em franca decadência, como acontece a tudo que não é firmado sobre bases sólidas. Antigamente, porém, quando a barbárie desenfreada imperava em toda a sua pujança entre um povo inculto e debochado, foi que a Confissão fez a sua época, atingindo satisfatoriamente o fim para o qual fora organizada.

            Para melhor aprecia-la volvamo-nos, por alguns momentos, a esse passado conduzidos pelo excelente trabalho “Fragmentos das Memórias do Padre Germano” e observemos atentamente o que se realizava na tétrica solidão de um templo em cujo confessionário se vê uma mulher de alta linhagem e ainda de mais alta fortuna.

            Ouçamos o que ela diz:

            - Padre, só vós me podereis salvar!

            - Pronto estou para vos ser útil, filha, fale..

            - A maledicência, meu bom padre, a ninguém poupa e eu apesar de ser a marquesa de B .. temo também me tornar uma de suas vítimas, arrastando, assim, a honra de uma nobre família para o lodaçal da vergonha.


            - Que vos aconteceu, então, filha? Sede franca! Bem sabeis que sou um ministro de Deus e, como tal, posso perdoar os vossos pecados, se os tendes: confessa e pois, sem escrúpulos, as vossas faltas.

            - Bem o sei. meu padre, e ser-vos-ei franca. Trata-se de minha filha, cuja beleza rara tem provocado a admiração da sociedade. Esta inocente, cedendo às fraquezas naturais de sua idade, deixou-se seduzir pelas falsas promessas de um nobre mancebo e, como era de prever, a consequência não se fez esperar. É preciso, pois, abafar a voz do fruto desse amor ilícito, pelo seu desaparecimento imediato e para desagravo da justa cólera de Deus, sepultar-se-á esse bastardo em um dos sítios de minha propriedade, onde se levantará um vistoso templo com o capital que a casa bancaria do marques, porá à disposição da igreja. Assim, serão feitas muitas orações a Deus, pelos fieis que lá se reunirão, sem contar ainda as grandes vantagens que daí advirão em benefício da crença. Desse modo acredito atenuar a cólera de Deus para esta pequenina falta cometida.

            Deixemos de ouvir a resolução desse sacerdote, se aceita ou repele a tentadora proposta e entremos neste outro templo.

            Que vemos agora aqui? Ainda uma mulher genuflexa ante o confessionário.
Ouçamo-la:

            - Padre, como sabeis, sou a duquesa de C. e esse título é acatado com o maior respeito, porque se patenteia nele o brasão de uma das maiores nobrezas do reino; e para que se conserve imaculada a honra do meu ducado é que recorro ao vosso imprescindível auxilio.

            - Dizei, pois, filha, em que vos posso ser útil e, inspirado como sou pelas graças do Senhor, poderei dar-vos todo o conforto de que necessitais.

            -  Ainda bem que posso merecer o vosso prestígio, meu bom padre.

            - Deveis dar graças a Deus, filha.

            - Padre, fraquezas cometidas irrefletidamente, nos meus últimos dias de solteira. tiveram por consequência o nascimento de minha filha de quem meu marido, que não tem o menor vislumbre de suspeita, julga ser pai. É precisamente essa confiança cega que ele em mim dedica, que me faz morrer de vergonha, perseguida a todo momento pelo remorso e tendo sempre diante de mim - ela como a prova do meu crime e - ele como a vítima da minha irreflexão. Para cessar o meu acerbo sofrimento, só tenho um meio que julgo eficaz: encerrei-a numa comunidade religiosa. Deixo-vos, pois, meu padre, a tarefa de convence-la de que deve professar, dedicando-se somente a Deus, e aqui tendes os documentos legalizados, com os quais a Religião receberá, em ouro e bens, a parte que, de fato, representa o dote real de minha filha.


            Ainda desta vez não procuremos saber qual a atitude deste padre ante tão miserável ação proposta e visitemos, ainda, mais uma casa de Deus.

            Agora, vemos um homem vestido de ouro e arminhos, que se aproxima do confessor. É o conde de F..

            - Padre, é bem certo que sou um desgraçado, apesar da fabulosa soma de ouro que possuo! ...

            - Que dizeis, filho? Não vos deveis julgar um desgraçado, pois que sois católico, e tão somente aos que o são é que Deus abençoa e reserva o reino da Glória.

            - Contudo, padre, julgo que Deus de mim se esquece e sem o vosso perdão para os meus crimes, creio que enlouqueço nas garras do remorso.

            - Contai-me, pois, os vossos pecados, filho, e eu vos prometo perdoar com a graça de Deus.

            - Assim o espero, padre. Oxalá que a misericórdia divina se estenda sobre mim, em recompensa do segredo que vos vou confiar.

            - Sabeis, padre, que enviuvei há dois meses, pois bem, a morte de minha mulher foi prematura ...

            - Como prematura, filho? Explicai-vos.

            - Sim, padre, uma paixão fatal que senti por uma outra mulher a quem desejava unir-me pelo matrimônio, exigia a supressão de minha esposa e fui forçado a ... envenena-la. Oh! Maldita acusação, até aqui me persegues! ... Ouvistes. padre?

            - Que, filho, estás louco?

            - Não, padre, não estou ainda. É a voz dela! Ouço-a: Assassino! Assassino! ... É sempre assim e em toda a parte, esse mesmo grito, desde aquele horrível dia!

            - Padre. orai! Pedi a Deus que afaste de mim esta perseguidora sombra que não me deixa um instante sozinho. Ouviste, agora, padre! Os seus brados de acusação são punhais que me atravessam! Piedade, padre! E para que Deus vos ouça, aqui tendes neste pergaminho, a doação do meu castelo de São Bernardo que, adicionado aos bens da religião, poderá servir de excelente mosteiro para as orações de uma nova comunidade, e mais o seu valor equivalente em ouro que será entregue para a sua instalação.  

            E basta para prova dos exemplos que necessitamos, ou teríamos de passar toda uma existência assistindo, sempre a mesma coisa, variando apenas de formas.

            Retrocedamos agora aos nossos dias que, apesar de tudo, são mais felizes do que esses tempos de crimes e atrocidades praticados por um povo ignorante que supunha obter o perdão de Deus, por intermédio da igreja e mediante uma certa soma de dinheiro mais ou menos avultada, segundo a gravidade do delito.

            Agora que respiramos uma atmosfera mais pura, longe daquele miasma pestilento de outrora, raciocinemos:

            Eis para que serviu a confissão e para que serviria ainda hoje, se uma Nova Luz bendita não nos viesse clarear a inteligência, mostrando-nos o verdadeiro e infinito valor de Deus e ensinando-nos porque estamos na Terra, o modo pelo qual nele devemos cumprir o nosso dever.

            Vimos como, pela confissão, se formaram os grandes capitais do Catolicismo, cujo patrimônio constitui a garantia da faustosa opulência que vem ostentando até hoje, em detrimento de quantos se julgavam quites das desobediências às leis de Deus, desde que resgatassem os seus crimes a peso de ouro oferecido à Religião.

            Assim é que se considerava coisa de somenos importância a eliminação dum ser humano, desde que o Criador fosse indenizado com uma casa de orações edificada sobre a sepultura da vítima e tendo por alicerce e argamassa os ossos e o sangue de um inocente.

            De outro lado, uma torpe e asquerosa criatura, cujo coração foi indigno de abrigar o sentimento puríssimo amor de mãe, ciosa em extremo da posição que desfrutava na sociedade, na qual lhe embaraçava a presença da prova de sua desonestidade, atirava num claustro (x), nessa antecâmara da morte, a sua própria filha, carne da sua carne e sangue do seu sangue.

            (x) Do Blog – Sugerimos a leitura do livro “O Claustro” de Manoel Aron, que desenvolve este tema com maestria. Originariamente editado pela FEB, mereceu reedição por terceiros.

            Não lhe tocava o âmago da consciência o menor vislumbre de piedade por aquele ente, miseravelmente roubado ao mundo, ao qual viera para fins muito diversos: não compreendia que aquele rebento teria de amar a um outro ser a quem se deveria unir, pois para isso criou Deus o homem e a mulher, e que dessa união brotariam, naturalmente, outros rebentos, aos quais, ambos ensinariam os primeiros passos e depois a amar a Deus, cumprindo as suas leis, para, de futuro, não merecerem o epiteto equivalente ao de “mãe desnaturada”.

            Ignorava essa mulher, como muitos ainda hoje ignoram, que a vida em comunidades religiosas é um atentado às leis da natureza, porque as criaturas vem ao mundo para amar, trabalhar, instruir-se, progredir enfim, gozando a liberdade da natureza que Deus nos concedeu e não para viverem encerradas em mosteiros, numa contemplação beatifica, longe dos prazeres da vida.

            Se assim fora, Deus, em vez de nos presentear com as miríades de maravilhas que constituem o planeta Terra, teria feito dele um enorme convento rodeado de janelas com grades de ferro e cercado de formidável muralha.

            Aí, então, internaria toda a humanidade de mãos postas, a balbuciar intérminas orações e a desfiar rosários, atravessando assim toda a existência para merecer o reino do Céu.

            Continuando a nossa ponderação, temos ainda de nos ocupar daquele ignorante que. para saciar um estúpido desejo material, não trepidou em assassinar a própria esposa que, certamente, estava muito longe de esperar tão covarde traição.

            A consequência, porém, dessa audaciosa afronta aos desígnios do Criador, não era somente o remorso que o perseguia, nem a voz do espírito da infeliz esposa que lhe relembrava, a cada passo, a monstruosidade do seu crime; aquilo nada era diante da tremenda expiação que teve de experimentar quando deixou a matéria a fim de pagar todos os seus erros, “até o último centil”, e, se a sua nobreza e a sua fortuna lhe não puderam servir para aplacar a angústia da sua desgraçada situação, muito menos ainda serviria para subornar Deus.

            A custa de ouro, talvez lhe tivesse sido fácil alcançar o perdão do sacerdote que é um homem falível, com as mesmas necessidades físicas, morais e intelectuais de qualquer outro; mas em relação a Deus, continuou insolvente. Fatos idênticos aos que acabam de ser aqui exemplificados, são frequentes na história da religião e só os ignoram aqueles que adotem uma crença simplesmente pelo fato de verem os outros adota-la.

            O excelente livro Fragmentos das memórias do Padre Germano, atesta ainda inúmeros casos em que as mais hediondas barbaridades e não menos debochadas corrupções eram praticadas pelos que se achavam convencidos de encontrar o imediato resgate dos seus crimes à sombra da igreja de Roma.

            Esta por sua vez, ignorando os verdadeiros atributos do Criador, prestava-se, consciente ou inconscientemente, a alimentar a esperança da falsa credulidade com promessas de perdão, quando os próprios prometedores são deles os mais necessitados.

            Eis, afinal, as consequências da confissão que, para satisfazer a ganancia que teve por escopo, serviu ao mesmo tempo de incentivo ao cometimento de crimes, visto supor-se que a confissão após o delito, tirava o efeito deste.

            Os sacerdotes, tornando-se- responsáveis diretos por todos aqueles erros, praticavam o, a seu turno, crimes sobre crimes, imbuídos da falsa convicção de se ombrearem com Deus, Único que pode julgar e perdoar.

            Infelizes vítimas do orgulho e da ambição.



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