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quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Perdoai-nos, Senhor!



Perdoai-nos, Senhor

                                                                                             
            Estávamos à mesa de um café, eu e o Rosendo, quando este, puxando-me a aba do paletó, . me diz um tanto ou quanto alarmado: - Olhe quem vem aí, o Policarpo! Aquilo é um peroba terrível, quase analfabeto, ateu, metido a filósofo. .. E sujo.

            E não pode dizer mais, porque o Policarpo já estava perto. Chegou, suado, empoeirado, as botinas por engraxar, um chapéu amarrotado, sem cor definida, um maço de livros e jornais em baixo do braço, além de uma pasta, o que tudo lhe dava um aspecto de vendedor ambulante.

            Rosendo fechou a cara, não cumprimentou o outro, e resmungou umas coisas para o lado, como se estivesse a falar com alguém, embora não se soubesse com quem ele falava.

            - Olá, grande ateu - fui eu dizendo, assim como quem pilheria, para disfarçar.

            O Policarpo não deu grande importância ao Rosendo, e replicou-me:

            - Você está enganado. Eu não sou ateu, sou apenas sincero; digo o que sinto, e como sinto. Se é certo o que vocês referem sobre a reencarnação, eu devia ter sido um grande hipócrita, que procura atualmente remir-se, ou fui uma vítima dos velhacos, e de tal jeito, que tomei o mais profundo horror à hipocrisia. Ora, o que eu acho é que vocês, com suas oblatas, seus subornos, suas rezas, não passam de uns grandes mentirosos.

            E o Policarpo voltou-se para chamar o caixeiro, que não aparecia com o café, e nem ao menos com as xícaras.

            O Rosendo aproveitou para rosnar: - Não te dizia? Grandíssima cavalgadura!

            Eu tossi, pigarreei, espirrei para que o outro não ouvisse.

            - Mentirosos com as nossas rezas, porque? - Aventurei, sentindo-me tocado, assim na minha doutrina, como na minha pessoa.

            - É justamente nas preces que se ostenta a hipocrisia dos "crentes". Fartos de se enganarem uns aos outros, resolveram enganar a Deus.

            O Rosendo catucava-me os pés, com grande prejuízo para os meus sapatos e os calos.

            - Como enganar a Deus? - Indaguei, aparvalhado.

            - Não é outra coisa o que vocês fazem todas as noites, todos os dias, ou todas as horas. Que é o pão nosso de vocês senão a maior patranha lançada ao Criador? Que é o que vocês dizem? "Pão nosso de cada dia nos dai hoje e perdoai as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores ... "

            - Eu não digo bem assim - interrompi.

            E o Policarpo continuando: - O fato é que ninguém perdoa coisa nenhuma. Contrarie alguém no que quer que seja, e ele logo dirá:

            "-  Aquele sujeito há de me pagar!"

            Outro fingir-se-á resignado, benevolente, enquanto lamentará: "Ele há de achar um dia quem lhe faça o mesmo!"

            Ora, aquela expressão não é mais do que o desejo de vingança por mão de outrem. Este declamará: "Eu perdoei, mas Deus há de puni-lo ." Quer dizer que lançou a vingança nas costas de Deus. E me estou só referindo aos seráficos. Muitos existem que não podem esconder a ira e despejam meia dúzia de desaforos na cara do antagonista, quando não a querem quebrar.     

            Um tal apanha uma frase no ar, ou sabe que disseram dele qualquer coisa, ou viram numa expressão algo de alusivo a sua importante personalidade, e ei-lo aziumado, formalizado, já vendo um inimigo pela frente.

            Por ligeira que seja uma observação que se faça a um cidadão, por mais inofensivo que se torne o reparo, às vezes íntimo, na melhor das intenções, e temos o cristíaníssimo cidadão a dizer, com umas casquinadas irônicas: "Ora vejam, aquele idiota a querer ensinar-me, a dar-me lições, a dizer-me o que eu devo fazer... "

            E toca a rebuscar na vida do reparador, nas suas palavras, ou na sua sintaxe, o que ele teria feito, dito ou errado, para proclamar aos quatro ventos a ação má que ele praticou, a má palavra que disse, ou a asneira que perpetrou.

            Às vezes, nem é preciso que haja um motivo. Basta que o "cristão" descubra uma falha no outro, para que a vá mostrar a toda a gente. É preciso que ela retumbe.

            Vejam-me a mim. Não faço mal a ninguém; nada tenho com a vida alheia, mas porque não posso pagar o engraxate, nem comprar um chapéu; porque os meus livros os adquiro no sebo; porque digo o que penso, logo vou criando uma série de rancorosos adversários, como se eu tivesse culpa das minhas ideias, ou como se as possuísse para ferir quem quer que seja.

            Neste momento, o Policarpo lançou como que um olhar vago em torno, mas que ao Rosendo se afigurou uma flechada quando, de relâmpago, passou por ele. Levantou-se, então, abruptamente, deixou na mesa, apenas, 40 centavos, que era o pagamento das nossas duas xícaras, e saiu de repelão, fazendo um bico com os beiços, que devia ser a suprema expressão do nojo ou da ira.

            Policarpo, parecendo inteiramente alheio à rabanada do Rosendo e ao próprio Rosendo, continuou:

            - E eles todos, com os olhos levantados ao céu, representado pelo forro da casa, irão rezar o Padre Nosso e dizer a Deus que perdoam aos seus inimigos.

            - Quer dizer que você perdoa - atalhei.

            - Nunca eu quis dizer isto; não sei se perdoo; provavelmente farei o mesmo que vocês; não minto, porém, ao meu semelhante, e muito menos mentiria à face de Deus, já lhe afirmando o que talvez não estivesse em minhas forças, já lhe pedindo o que poderia adquirir com o meu trabalho.

            É, meu velho - continuava ele - batendo-me amigavelmente nos ombros - devemos ter a sinceridade do autor da Summa Teológica, que ao lhe perguntarem o que ele faria se fosse tentado, respondeu: "O que eu devia fazer eu sei; o que eu faria só Deus o sabe." Assim digo eu: "- Sei lá se me vingaria!" Que é o que pode dizer que faria ou fará quem foi forjado nesta lama de que saímos?..

            - Argamassada com lágrimas - concluí eu, para dizer alguma coisa, e não ficar como aluno que está recebendo uma lição, embora me parecesse uma frase à La Palice[1], mal a tinha pronunciado.

            - Argamassada com muita estupidez e muito sangue - para logo replicou o Policarpo.

            E pondo na mesa os duzentos réis que faltavam para o pagamento completo do café, servido a três, enquanto eu procurava apressadamente um níquel no bolso, despediu-se, e lá se foi, suado, empoeirado, o chapéu velho, as batinas gastas, tipo do filósofo malquisto, mastranquilo com a consciência.

por Carlos Imbassahy (pai)
in Reformador (FEB) Dezembro 1945



[1] Do Blog: Jacques de la Palisse, foi um nobre e militar Francês,.Nasceu em 1470 e faleceu em 1525. Combateu os exércitos italianos e morreu na batalha de Pavia. A sua popularida junto aos soldados, fez nascer várias canções militares a seu respeito. Uma dessas canções, cantada após a sua morte, possuía os seguintes versos: "S’il n'était pas mort il ferait envie", (Se ele não estivesse morto, faria inveja) a qual foi deformada em "s'il n'était pas mort il (ƒerait – serait) en vie"(se ele não estivesse morto faria/estaria vivo); desta frase saiu o termo «lapalissada», que designa uma forte evidência, uma situação extremamente óbvia. Fonte: Wikipedia


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