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segunda-feira, 13 de agosto de 2012

53. 'Doutrina e Prática do Espiritismo'



 53   ***


            Se o sono é, como vimos, o fenômeno não somente necessário à conservação do corpo, mas sobretudo indispensável, para o espírito ao exerci cio de suas faculdades no plano invisível, onde com muito mais frequência do que geralmente se imagina são tomadas as suas deliberações para o estado de vigília, o que a sabedoria popular com tanta justeza reduziu à formula aforística "a noite é boa conselheira," os sonhos constituem, por seu lado, outros tantos fatos demonstrativos da existência e da independência do espírito no homem.

            Que quer dizer, com efeito, a atividade noturna do princípio inteligente e volitivo, enquanto o corpo dorme, senão que esse princípio é capaz de percepção e de ação, à revelia dos órgãos e dos sentidos físicos, não raro a consideráveis distâncias do sítio em que se conserva o indivíduo adormecido?     

            Não falamos - é claro - dos sonhos vulgares e incoerentes geralmente explicáveis por uns restos de atividade cerebral, posto que em muitos casos as cenas e imagens percebidas, sem nenhuma relação com sucessos anteriormente registrados pelo cérebro, orçando pela extravagância e apresentando as mais estranhas combinações, demonstrem a insuficiência dessa explicação comodamente simplista.

            Faça cada um apelo a sua memória, ou - melhor ainda - aplique-se a registrar, sobretudo quando se opere um despertar brusco, pela noite adiante, as impressões e percepções, mesmo, ocorridas nesses sonhos vulgares, e com frequência reconhecerá que algo mais que reminiscências no cérebro fixadas intervinha no desenrolar das cenas e nos caracteres das figuras com tanta nitidez transportadas naquele momento ao campo da consciência de vigília.

            O cunho não poucas vezes extravagante e fantasista de um grande número de tais sonhos, não podendo ser atribuído ao simples trabalho automático do cérebro, de si mesmo incapaz de forjar os materiais novos de que frequentemente são tecidos, nem devendo ser levado à conta do espírito, que certamente em seus momentos de emancipação tem mais úteis e sobretudo mais sensatas preocupações a absorve-lo que entretecer absurdas fantasias, constitui uma das muitas obscuridades em que ainda, se envolvem as manifestações da psiquê humana e permanece exigindo uma explicação, que ainda não vimos satisfatoriamente formulada.          

            E não admira que assim aconteça, dadas as condições especiais de observação que seria preciso preencher, até chegar-se aquele resultado, não podendo cada um registrar senão os seus próprios testemunhos, admissíveis como elementos subjetivos de convicção, mas inadequados para uma experimentação verdadeiramente científica o primeiro de cujos requisitos é poder ser provocado o fenômeno à vontade. E os sonhos, assim vulgares como os transcendentes, não estão positivamente nesse caso.

            Por nossa parte, se aceitamos a título provisório, pelo menos, e em falta de melhor explicação, a consagrada teoria da remanescente atividade cerebral, para os sonhos vulgares, quando reproduzam imagens, e fatos registrados no estado de vigília, não sendo assim mais que uma revivescência de percepções anteriores, renunciamos a toda explicação pana os que, sem perder o seu cunho vulgar, se revistam contudo do indicado aspecto extravagante e fantasista.

            O nosso intuito, fazendo mais uma vez obra de sinceridade, é apenas assinalar aos estudiosos das coisas da alma a zona positivamente enigmática que assim se apresenta na órbita de suas manifestações, a reclamar sem dúvida uma sistemática pesquisa.

            Isto posto, reatemos o fio das nossas considerações.

            Dizíamos que a atividade noturna do nosso espírito, quando principalmente caracterizada em sonhos lúcidos de varia natureza, é prova de sua capacidade de ação à distância e de percepção à revelia dos sentidos físicos. Mais ainda: é nesses momentos de emancipação temporária dos constritores vínculos da carne que, transportado ao plano das causas, pode o espírito colher os mais salutares ensinamentos, e mesmo penetrar na gênese' dos acontecimentos que lá se preparam e vêm a ter a sua realização no plano dos efeitos, que é o mundo visível em que nos movemos, muito menos importante assim que o outro a que está subordinado.

            Exemplos de tais sonhos se acham em grande número espalhados nas revistas de estudos psicológicos e de propaganda espírita, não havendo senão a dificuldade da escolha. Para ilustrar contudo a nossa tese, acreditamos bastarem os seguintes, de preferência colhidos por sua expressiva e até certo ponto, perturbadora significação, na dupla categoria de sonhos premonitórios ou de antevisão do futuro e sonhos simbólicos, nos quais os fatos apresentados sob a forma alegórica, dir-se-ia que coordenados,  como tudo o faz crer, por inteligências extraterrestres, reclamam, para o entendimento do sentido que exprimem, uma interpretação geralmente instrutiva para o percipiente.

            Eis aqui um primeiro exemplo de sonho premonitório, cuja narrativa, ,enviada pelo Sr. Alex Blunck, de Venezuela, e publicada no EL SIGLO ESPIRITA, do México, foi reproduzida no REFORMADOR, de 1 de dezembro 1910:

            "Na noite de 19 de fevereiro de 1909, sexta-feira - refere o missivista - sonhei que me achava junto à porta de uma sala, em que se encontravam muitos homens vestidos de preto, todos para mim desconhecidos. A sala era antes comprida que quadrada, havia ao centro uma mesa de forma oval coberta com uma toalha branca.

            "Um dos desconhecidos levantou-se de seu assento, aproximou-se de mim e, indicando com a mão direita a reunião, me disse: Esta cerimônia fúnebre se efetuará segunda-feira - 10 de março."  Eu procurava com a vista a peça ou a cama, para saber quem era o morto, mas nada podia perceber. Despertei e não mais pude conciliar o sono toda a noite.       

            "Pela manhã comuniquei o sonho ao meu genro, o general Norberto Borges, e ao Dr. E. Robsis Lopez, médico em Caracas, que passava conosco uma temporada em Los Teques, dizendo-lhes que me inquietava não saber quem era o morto . Não conheci também nem a sala, nem um só dos assistentes que vira nessa reunião.

            "Minha filha, a Sra. Rosa de Borges, tinha ido a Caracas passar os dias de carnaval e a esperávamos, de regresso, quarta-feira de Cinzas, no trem da tarde. Ao meio-dia falou pelo telefone meu genro, dizendo que não a esperássemos, porque tinha trazido de El Valle para Caracas um sobrinho seu, José Antonio Absneta, com febre tifoide; estava ele em uma casa de pensão e ela ficaria lá, até que o doente apresentasse alguma melhora.

            "Ao saber por meu genro essa noticia, respondi-lhe que me parecia ser José Antonio que morreria no domingo próximo, 28 de fevereiro.

            "Passaram os dias de quinta e sexta-feira, e o menino grave. No sábado, ao sair o Sr. André Borges para Caracas, disse-lhe eu: "repare bem na sala da casa e avise-me."  De Caracas participou-me que o sobrinho estava em seus últimos momentos; que a sala e a mesa coberta com uma toalha branca eram exatamente como eu descrevera ter visto em sonho. O sobrinho faleceu no domingo, pela madrugada.

            "Contra o costume o corpo não foi posto na sala; a mãe não quis apartar-se dele um só momento, e do quarto em que se dera óbito saiu o caixãozinho, não na segunda-feira, mas no
domingo à tarde. Pelo estado delicado, nervoso, da mãe, estando-se em uma casa de pensão e havendo certificado os médicos que menino morrera de febre contagiosa, a autoridade permitiu que o enterrassem no mesmo dia, antes das vinte e quatro horas estabelecidas na lei.

            "Los Teques, Venezuela, março 15 de 1908. - ALEX BLUNCK."

            Em seguida vem esta declaração confirmativa, assinada pelo médico a que alude o narrador:

            "O exposto acima é exato. O Sr. BIunck nos referiu o sonho no dia seguinte pela manhã. Caracas, 20 de novembro de 1909.  E. Robsis Lopes."

            O seguinte caso, divulgado pela ANNALES DES SCIENCES PSYCHIQUES, a excelente revista parisiense dirigida pelo professor Charles Richet, e também reproduzido no REFORMADOR (1), é ainda mais significativo, não só por suas minuciosas circunstâncias, como pela absoluta fidelidade com que veio a realizar-se, a uma distância de dois meses:

            (1) Vide edição de 1º de dezembro de 1912.

            "Em uma noite do mês de agosto do ano último, despertei sob a impressão de um sonho que, enquanto parecesse não ter importância alguma, tinha sido tão vivo e tão real que despertei tambem minha mulher e lhe contei imediatamente com todos os seus estranhos pormenores, curiosos e precisos.

            "Achava-me num lugar campestre, em um caminho de pó branco, pelo qual penetrei num vasto campo cultivado. No centro desse campo elevava-se uma construção rústica, com divisões para casa de negócio e estábulo. À direita da casa havia uma espécie de cabana de madeira coberta de folhas e ramos secos, convenientemente dispostos, e havia também um carro cujos lados eram baixos, e sobre ele, arreios para um animal.

            “Mais adiante um camponês, cuja fisionomia me ficou viva e nítida vestido com umas calças escuras, a cabeça coberta por um chapéu preto, se aproximava, convidando-me a segui-lo. Conduziu-me por detrás da habitação, e, por uma porta estreita e baixa, entramos em um pequeno estábulo, de 4 ou 5 metros quadrados quando muito, cheio de Iodo e esterco. Nesse estabulo havia uma pequena escada de pedra que dava acesso para a porta de entrada. Uma mula estava ali atada e, com a parte traseira do corpo, impedia a passagem para a subida dos primeiros degraus, Tendo-me assegurado o camponês que o animal era manso, empurrei-o, para poder passar, e subi a escada, encontrando-me, no alto dela, em um pequeno salão, com soalho de madeira, e observei, pendentes do teto, tomates, cebolas e outros frutos.

            "Nesse mesmo quarto, que servia de antecâmara, estavam duas mulheres e uma menina. Uma das mulheres era velha, a outra moça; supus que esta fosse a mãe da menina, As fisionomias dessas três pessoas ficaram também vivamente gravadas em minha memória. Pela porta, que dava para a habitação contígua, via nesta uma cama de casal extremamente alta, como nunca eu tinha visto outra.

            "Eis aí o sonho.

            - "Que pode ele significar? perguntei a mim mesmo e a minha mulher, nessa mesma noite .

            - "Que queres tu que signifique? respondeu-me ela. Um quadro fantástico, uma paisagem de lugares nunca vistos e que se formaram em tua imaginação por uma associação de ideias. Não me parece ter significação alguma.

            - "Sim, lhe respondi, pode ser.

            "Não se falou mais do sonho e tornamos a dormir.

            "No mês de outubro do mesmo ano tive que ir a Nápoles para assistir a um duelo de nosso concidadão Sr. Amadeo Brucato.

            "Não é esta a ocasião de expor as peripécias, os aborrecimentos e incômodos por que passei por causa desse fato; basta dizer que o incidente me arrastou também a um duelo.

            "Esse duelo teve lugar a 12 de outubro, dia em que com minhas testemunhas, capitão Bruno Palamenghi, do 4° de Bersaglieri, e Francisco Buzardo, fui de automóvel a Marano, aonde nunca em minha vida tinha ido e cuja existência ignorava.  Apenas penetrei algumas centenas de metros em pleno campo, a primeira coisa que me impressionou vivamente foi o caminho largo e branco de pó, que reconheci, por tê-lo visto; porém quando? naquela ocasião? Paramos nos limites de um campo que não me era desconhecido, posto que nunca o tivesse visto antes! Descemos do automóvel, e, por um caminho bordado de fungos e de plantas, penetramos no campo. E disse eu ao capitão Bruno Palamenghi, que estava a meu lado: "Conheço este lugar; não é a primeira vez que venho aqui."

            "No fim do caminho deve existir uma casa; além, à direita, deve haver uma cabana de madeira; e havia, com efeito tudo aquilo e também um carro com os lados baixos, contendo arreios para animal de tiro. Um instante depois, um camponês de calças pretas, com chapéu da mesma cor, exatamente o mesmo que eu tinha visto dois meses antes em sonho, veio convidar-me a segui-lo por detrás da casa; e, em lugar de segui-lo, eu o precedi até a porta do do estábulo, que eu já conhecia; ao entrar, vi a mula atada; então olhei para o camponês como para interroga-lo sobre a mansidão do animal, porque a anca deste me impedia de subir a pequena escada de pedra, e ele me assegurou, como em sonho se passara, que não havia perigo algum. Tendo subido as escadas, encontrei-me no salão, ou quarto, onde vi pendentes do teto os tomates, as cebolas, o milho, etc., e na saleta, mudas, em um canto, à direita, as três mulheres: a velha, a jovem e a menina, tais como eu as vira em sonho.

            "No quarto próxímo, onde entrei para me despir; reconheci a cama que, no sonho, tanto eu tinha admirado pela sua altura; e nela coloqueí minha roupa e meu chapéu.

            "Devo, meu amigo, confessar que o fato do duelo, do qual estava despreocupado inteiramente desapareceu de todo do meu espirito, que foi absolutamente invadido, até o momento do assalto, pela estranha coincidência, que não me pude explicar nem então nem depois, porém que me causou uma impressão enorme.

            "Eu havia falado do meu sonho a vários amigos, na sala de armas, no círculo de esgrima e outros. Pessoas que podem dar testemunho disto: capitão Palamenghi, advogado Thomás Porcasi, Sr. Amadeu Brucato, conde Dentole Diaz e o Sr. Roberto Gionina, de Nápoles, que foram testemunhas de minha narração positiva dos lugares e das pessoas que tomaram sua parte respectiva nos incidentes daquele duelo.

            "Minha palavra de cavalheiro bastará, creio, para garantir a verdade desses fatos; entretanto, se for absolutamente necessário recorrer a uma prova testemunhal, não tenho dificuldade em escrever a alguns dos amigos citados que, estou certo, não deixariam de corresponder a meu desejo.

            "Eis aí os factos; sua interpretação pertence aos que estudam essas coisas. - GIOVANNI DE FIGUEROA."

            Que outra interpretação se poderá dar - observaremos por nossa parte - senão a mais natural, a mais e mais simples, isto é, que o espírito do narrador, em seu desprendimento durante o sono, dois meses antes, fora atraído para o lugar em que tais sucessos se haviam de desenrolar e aí, por esse misterioso poder da alma, de penetrar no que, em nosso estado de normal cegueira, se consideram Ias caligens do futuro, lograra a antevisão do que, inexistente para o homem, já era realidade para o espírito?

            Esse, como tantos outros fatos da mesma natureza que, por desnecessários, nos absteremos de reproduzir, parecendo-nos suficientes, a titulo ilustrativo, os que aí ficam, poderá sem duvida, à primeira, vista, sugerir dúvidas a cerca do livre arbítrio, de que já tratamos com o possível desenvolvimento, por isso que parece estabelecer um conflito entre o exercício dessa faculdade e o fatalismo com que assim se apresentam encadeados os sucessos da existência humana.

            Sem pretender reeditar argumentos anteriormente expostos, lembraremos, entretanto, que o livre arbítrio, limitado ao demais, como o demonstramos, é antes de tudo uma faculdade propriamente do espírito e se afirma, não em modificar o curso dos acontecimentos, que uns aos outros se vão ligando por múltiplos e imperceptíveis elos, que os tornam inevitáveis, mas em escolher, no foro íntimo da consciência, as deliberações por que se há de o indivíduo decidir.      

            Arrastado na torrente dos sucessos, que causas anteriores preparam e nas quais ele mesmo colaborou, o homem se faz a ilusão de uma liberdade muito maior que a que realmente lhe é licito fruir, no estado atual de sua evolução; e, porque ignora a inflexibilidade da lei que liga, às causas os efeitos, alarma-se ao verificar que não está em sua mão impedir que a pedra role pela encosta, quando ele mesmo, consciente ou inconscientemente, a impeliu do alto da montanha. Julga-se assim ludibriado em sua liberdade, quando devera singelamente confessar a sua ignorância de a entender em sua verdadeira significação e nos limites que lhe estão traçados.

            Poder-se-á objetar que, se assim é, se o encadeamento dos fatos se apresenta com um cunho, por esse modo, inexorável, mais valerá cruzar o homem os braços, deixando-se automaticamente arrastar em seu irresistível curso, o que seria a consagração da doutrina fatalista?

            A isso responderemos insistindo em que a própria liberdade moral do homem - liberdade interior e incontestável, podendo se exprimir em atos - constitui um elemento eficiente, um fator ativo na preparação da trama desses mesmos factos, o que quer dizer que, se ele nada pode contra os efeitos de anteriores causas engendradas com a sua mesma colaboração, é sempre senhor de preparar novos efeitos, consoante as deliberações, isto é, os motivos causais que atualmente gere e que, num prazo mais ou menos dilatado, frutificarão com a mesma inflexibilidade dos sucessos atuais, oriundos de anteriores movimentos psíquicos.  

            A narrativa dos sonhos simbólicos, que passamos a fazer, fornecerá talvez - acreditamos - novos subsídios aos estudiosos para a compreensão desse problema, dada a possibilidade, que apresente, da frustração de maléficos  sucessos graças à intervenção de benfazejas entidades espirituais em tal sentido.


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