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domingo, 22 de julho de 2012

Ideais e Ideias




‘Ideias e Ideais’


            Quando entrei para o Espiritismo, enchi-me de ideias. Cristão novo, logo por elas me entusiasmei, achando-as inatacáveis, e julgava que quem não as compartilhasse dava sobejas provas de debilidade mental, visto que me pareciam elas firmadas nuns embasamentos indestrutíveis.

            Mas sucedeu que entre mim e um amigo meu, espírita como eu, e como eu referto de ideias inderrogáveis, surgiram sérias divergências doutrinárias.

            Resolvemos consultar o guia. O pior é que o guia se manifestava pelo meu contraditor, que era o médium, e, no momento, não havia à mão, nem outro médium, nem outro guia. E eu, apesar da minha profunda crença no mediunismo, comecei a recear aquilo que se chama em termos de ciência, "a interferência do psiquismo do metagnomo."  

            Mas o médium caiu em transe e eu lhe apresentei o ponto em debate, perguntando-lhe qual de nós estava certo.

            - Nenhum - respondeu serenamente o guia, e elucidou: - Meus amigos, as ideias de vocês não valem nada; os homens ainda pensam como crianças que são; as puerilidades com que se preocupam e que lhes tomam o tempo, a cabeça e a razão espantariam os que aqui se acham em nosso plano, se não percebêssemos como vocês ainda são atrasados. Não imaginam como nos sentimos penalizados quando vemos as questiúnculas que os separam, quando os notamos perdidos em frioleiras, cada qual com sua pequenina ideia, com seu restrito ponto de vista, com sua minúscula doutrina, e isto, muitas vezes, com prejuízo dos grandes princípios que devem levar o homem à paz e à felicidade.

            As ideiazinhas devem ceder terreno ao grande ideal que é o da solidariedade entre as criaturas; por ele é que tomamos o penoso encargo de baixar até aqui; para ele é que os queremos encaminhar. Não troquem nunca as pequeninas ideias que os separam pelos grandes ideais que os devem unir.

*

            Ficamos de cara à banda, eu e o médium, principalmente o médium, que nunca supôs fosse desautorado pelo próprio guia, e que se julgava sempre altamente inspirado.

            Passou-se o tempo, e comecei, então, a compreender o que havia de verdade naquele ensino.

            Basta um relance de olhos pelos fastos humanos para que se verifique como os homens se têm injuriado, maltratado e matado por ideias; e, com o correr dos séculos, se percebe como eles e elas andavam errados. As frioleiras por que uns assassinavam os outros, deixam-nos atonitos, sem saber o que mais espanta neles, se a ferocidade, se a ignorância.

            É, sem dúvida, para abismar, a lembrança das lutas que se travaram em França, entre duas facções religiosas, porque uma achava que a missa devia ser dita em latim, e a outra, em francês.

            Pudessem elas sondar o Espaço, a ver qual seria a opinião dos Mentores, se a língua francesa ou a língua latina, e eles, provavelmente, responderiam que a missa não deveria ser dita em língua nenhuma.

            Os massacres a que deram lugar as contendas religiosas, ainda hoje são memorados, tal a intransigência e o furor dos combatentes. E quanto mais devoto, quanto mais crente o indivíduo, a hoste, a sociedade ou a nação, tanto menos piedosos, generosos ou clementes se tornavam os pelejadores.

            Quando os exércitos se levantaram para as Santas Cruzadas, estavam certos de que aquela ideia de tomar o Santo Sepulcro aos infiéis era uma coisa sublime.      

            E destruiram cidades, talaram campos, cometeram toda a sorte de violências, morrendo de fome, de peste, de cansaço, de combates ...

            Perderam-se uns dois milhões de seres, porque se achava que os Santos Lugares não deviam estar em poder dos muçulmanos.

            Ainda agora há quem creia tais Cruzadas de muito proveito.

            Quando as fogueiras crepitavam em quase toda a Europa, quando os huguenotes eram exterminados na noite de S. Bartolomeu, quando os cátaros e os albigenses se viam queimados fora e dentro de suas igrejas, quando o duque d'Alba investia a Holanda, quando os soldados do general Anhalt apanhavam no ar as crianças turcas à ponta de baioneta, quando Mendes Pinto trucidava os hereges no Oriente, quando eram imolados os íncolas, na América, tudo isto se fazia em nome de Deus, e os matadores estavam convencidos de que possuíam a verdadeira ideia.

            Para o árabe, o ímpio era o cristão; para o cristão, o ímpio era o árabe. E nessa ideia acutilaram-se razoavelmente.

            Gengis-Khan entrava com sua montaria nas mesquitas, fazia dos livros santos cama para os animais e mandava que os sacerdotes tratassem dos cavalos.

            Tamerlão não podia ver um cristão que o não estripasse; Balduíno, por sua vez, não podia ver um sarraceno que lhe não tirasse a cabeça.

            E ainda pior eram as rivalidades dentro da mesma religião. O dissídio entre católicos e protestantes fora de extermínio.

            Entretanto, fugiam todos do supremo ideal, mormente aqueles que empunhavam o lábaro de Jesus, para quem a lei se resumia no amor do semelhante.

*

            O grande ideal entre os espíritas seria promover a aproximação das criaturas, e de maneira que aquele ensino evangélico se tornasse para todos um imperativo categórico.

            Não há motivo para ódios entre os religiosos, nem deve existir um abismo entre as religiões.

            Estaria de acordo com os preceitos do Divino Mestre a tolerância entre os filhos de um mesmo Deus, e nunca a luta acesa, a de ferro e fogo como outrora, a de doestos (insultos) como hoje.

            Sem prejuízo dos seus pontos de fé, nem dos seus princípios, nem dos seus mistérios, nem dos seus dogmas, nem do seu catecismo, poderia a religião católica, a menos tolerante das nossas religiões, formar com as demais na propagação, no estabelecimento da solidariedade, da fraternidade, da paz universal.

            Cada religião adotaria esse mesmo processo, esse mesmo princípio.

            Ao Espiritismo caberia a iniciativa e, principalmente, o exemplo, por ser, a meu ver, a mais avançada das doutrinas religiosas. E o exemplo deve começar por casa.

            Entre os espiritas, que todos se unam e se reúnam pelo preceito comum, primacial, da caridade, e pelos que formam a espinha dorsal das lições mediúnicas. Não importa a opinião especial de cada um, nem a de cada Centro, ou de cada Grupo, ou de cada União, ou de cada Comunidade. Filiemo-nos a uma só bandeira, sob a égide dos Preceptores, dentro do lema supremo da Harmonia, da Justiça, do Desinteresse, do Bem.

            Independência completa de ideias, coesão indestrutível de ideal.

            Alguns passos, neste sentido, já foram iniciados, com, oposição, infelizmente, daqueles que pensavam como eu, antes que o tempo e a reflexão me iluminassem o entendimento.

            Quando pairar sobre todas as religiões e sobre todos os religiosos o espírito da confraternização, reinará a concórdia no planeta, e haverá, então, um só rebanho e um só pastor.

            Possam todos pensar como o célebre eclesiástico de que fala Machado de Assis, o qual acreditava que uma onça (30g) de paz vale mais que uma libra (454g)  de vitória.
     

por  Carlos Imbassahy (Pai)

in Reformador (FEB) Agosto 1945
                                  



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