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quarta-feira, 18 de julho de 2012

2. Bilhetes


2.   Bilhetes
          
             Tens razão, meu amigo. O diabo está ficando cada dia mais poderoso. Tens razão também quanto ao afirmares que só as comunicações recebidas pelos médiuns dos conventos são angélicas. Todas as demais, recebidas pelos adeptos de outras religiões ou mesmo pelos teus confrades que vivem fora dos conventos, são oriundas da ação do Sr. Satanás, respeitável cavalheiro que domina noventa e nove e nove décimos das criaturas da Terra, por encaminhá-las, com a sua habilidade, para o Inferno, roubando-as d' Aquele que as criou e não as pode conduzir para o seu Paraíso.

            Tens razão, muita razão mesmo. O vigário te afirmou que é assim; proibiu-te a leitura de qualquer obra estranha ao teu meio; ameaçou-te com as tétricas caldeiras infernais; anulou-te com dogmas o direito de pensares; tirou-te a liberdade de raciocínio que caracteriza o animal--homem, logo, tens razão, muita razão.

            E eu, que já me libertei dos grilhões que me prendiam, na infância, fico a pensar nesse imaginário demônio e me recordo de já o haver encontrado frente a frente.

            Estávamos numa reunião espírita. Sala repleta. Silêncio absoluto e respeitoso. O orador, além de inteligente e culto, era médium inspirado. Todos os olhares se convergiam nele e todos os ouvidos lhe guardavam as frases repletas de ensinamentos evangélicos.

            De repente, quando aquele pregador- começou a defender o Espiritismo dos ataques de certos sacerdotes, evidenciando-lhes os erros e os crimes registados pela História, o salão foi sacudido pelo sapatear e pelos gritos de uma pobre mocinha que ali comparecia pela primeira vez.

            Aquela criatura humilde, que se assentara tão calmamente numa das cadeiras da assistência, transformou-se num ameaçador demônio, que atiraria cadeiras sobre os seus vizinhos, se não fora a aposição imediata da mão de um médium que lhe estava próximo.

            Quando vi aquela inocente mocinha de olhos esgazeados, a quebrar cadeiras e a ameaçar o orador com palavras violentas, tive a impressão de que me encontrava diante do tal famigerado demônio que tantas vezes me fez fechar os olhos, quando me rebelava contra a ama-seca, que, ninando-me, ansiava por se ver livre do trabalho.

            Esse, porém, não era imaginário como os auxiliares da pretinha que me acalentava em criança. Esse era real. Vi-o, sem chifres, é bem verdade, mas tal qual me apresentavam nas lições de catecismo da minha aldeia.

            Não lhe vi a indumentária preta. Outros, porém; possuidores do dom mediúnico da vidência, me descreveram minuciosamente.

            Que nos aconselhava esse demônio? - Que amassemos ao nosso próximo? - Não, porque era para convencer o auditório de que só o amor constrói a felicidade prometida por Jesus que se fazia aquela prédica. Então: Que dizia ele?

            - Não te apresses, leitor amigo, não te impacientes pelo fim. A mocinha voltou a si. De nada se lembrava e tudo ignorava, mas nós, ao nos retirarmos do salão, depois de uma hora de alegrias espirituais, ainda ouvíamos o barulho de cadeiras que se quebravam e aquela voz que berrava:

            - "Fora da Igreja não há salvação".





assina     G. Mirim
(Antônio Wantuil de Freitas)
in ‘Reformador’ (FEB) em Junho  1945




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