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quinta-feira, 26 de maio de 2011

12 (e final) Escravidão e Espiritismo




-XII-
 ‘Glorioso Ascenção’

por Alberto de Souza Rocha
Reformador (FEB)  Dezembro 1988

           
Quando virmos alguém, quem quer que seja, em condições de dificuldade, se não pudermos de pronto ampará-lo, pelo menos procuremos não julgá-lo pelas aparências. Muito especialmente em se tratando de criança. Ninguém sabe a rigor, em princípio, que alma estará animando aquele corpo. No mínimo, um irmão na romagem evolutiva. Poderá ser, porventura, por menos que se espere, aquele a quem as gerações futuras homenagearão com o preito merecido por grandes feitos ou pelo exemplo deixado.
Um garoto desceu certo dia de uma favela no Rio de Janeiro, deu de frente com modesta tipografia e – homem feito – fundou a Academia Brasileira de Letras. Que se poderia esperar de outro garoto nascido de mãe escrava e de pai fidalgo português, que pouco faria por merecer essa condição? É o que pretendemos rememorar aqui.
Transcorria o ano de 1830, quando o Brasil contava apenas oito anos de Independência. A Bahia, no entanto, um pouco menos, pois vivera a luta pela emancipação e pela unidade nacional. E nessa luta tombaram muitos heróis, entre eles Soror Angélica. Pois, nesse ano, nascera de uma negra mina e desse fidalgo, como de resto acontecia por esses brasis afora, o menino Luís Gonzaga, o santo do dia das folhinhas. Atestava-se a catolicidade dominante à época, e se fizera  hábito por muitos anos, ainda, a escolha do santo do dia para nome dos recém-nascidos. Por extenso seu nome seria exatamente Luís Gonzaga Pinto da Gama. Mas a explicação da vinda daquele Espírito adrede preparado ao regaço maternal de uma escrava será dado pelo que se contém no capítulo de “O Livro dos Espíritos” referente à escolha do gênero de provas por parte do reencarnante. Especialmente a Questão 260, que ensina:

Forçoso é que seja posto num meio onde possa sofrer a prova que pediu. Pois bem! É necessário que haja analogia. Para lutar contra o instinto do roubo, preciso é que se ache em contato com gente dada à prática de roubar”.

Deve ser exatamente por isso que o nosso Luís Gama escolheu provas por demais ásperas, mergulhando na carne no seio da raça espezinhada para viver plenamente o potencial de sacrifícios, desenvolvendo a tenacidade como verdadeiro escudo. Vindo ao mundo numa fusão de raças, haveria de sentir todo o clamor da que era aviltada. Pois, tinha apenas 10 anos quando, a 10 de Novembro de 1840, o pai, jogador inveterado, premido por acordo com o dono de uma casa de tavolagem, resolveu fazer um negócio. Levou o garoto pela mão para visitar um navio que partiria para o Rio de Janeiro, o “Saraiva”. Propositadamente deixou-o com estranhos, prometendo voltar. Para logo o garoto, muito atilado, exclamou com segurança:

- Meu pai, o senhor me vendeu!”

Fora esse o negócio. Como os irmãos a José, o pai o vendera por alguns mil-réis. Iniciara-se lhe o pesadelo. Coloque-se qualquer de nós por um instante fugidio na posição do pequeno Luís, vendo desmoronarem-se diante dele, aos 10 anos, todas as ilusões, todas as esperanças... De Salvador veio ao Rio e depois para São Paulo. Em breve o negrinho estava exposto à venda no mercado escravagista de Campinas.
Há, desse tempo, uma versão anedótica, a de que o Conde de Três-Rios esteve prestes a compra-lo. Pensando um pouco, ter-lhe-ia dito:

“- Já não foi por boa coisa que te venderam tão pequeno.”

A curiosidade do episódio está em que, muitos anos depois, o Conde o teria como um de seus melhores amigos.
Irrequieto, Luís desde cedo mostrava traços de sua superioridade e a ânsia de instruir-se. Tanto que teria aprendido as primeiras letras às ocultas com um filho de seu proprietário. Com essa chave preciosa se abriria caminhos para o futuro.
Certo é que vamos vê-lo mais tarde em busca de emprego. Foi tipógrafo. Daí para o jornalismo foi um pulo. Ora, ninguém, porque saiba ler e escrever, porque aprenda a manejar uma caixa de tipos gráficos, revela por isso dotes de inteligência e de cultura invulgares.  Aquela cultura e aquela inclinação lhe vieram por força de outras vidas. Passou a escrever no jornal “Ipiranga”, depois no “Radical Paulistano”. Instalou banca de advocacia e se fez ao mesmo tempo jornalista veemente. Descobriu-se orador de grandes platéias emocionadas. Escreveu poesias. Inúmeras vezes apresentava defesas extraordinárias no Tribunal. Vítimas de críticas mordazes e insultuosas, que lhe tentavam macular a origem, respondia-as com sagazes ironias, deixando o opositor arrependido da provocação.
Como José do Egito, vendido, não se curvou ao que seria para ele o destino traçado, implacável. Não nascemos para curvar-nos ás dificuldades, mas para superá-las, ou para tenta-lo com dignidade e valor. E ele venceu. Sua pena e sua voz se ergueriam, varonis, contra o desamor e a opressão, que experimentara ele próprio.
Conta-se que, certa feita, entrou em seu escritório um escravo, a pedir por sua causa. Logo a seguir, o senhor, exclamando:

“- Que te falta? Queres deixar o cativeiro de um homem bom para seres infeliz em outra parte?
Ao que, por ele, respondeu Luís Gama:

“ - Falta-lhe a liberdade de ser infeliz onde e como queira.”

Luís Gama não viu, como encarnado, a epopéia do 13 de Maio. Desencarnara 6 anos antes, a 24 de agosto de 1882. Já trouxemos a estas páginas a sua bela mensagem mediúnica sobre o velho ideal, que não morre, mas que se transmuda em gloriosa ascensão.[1]

Encerra-se o ano dedicado às comemorações do Centenário da Abolição. Encerra-se aqui esta série.
Pretendemos admitir que estejamos, de certa forma, nos desobrigando gratamente de algum compromisso consciencial. Quem o saberá? Certo, sempre nos tocou profundamente a sensibilidade a situação desses nossos irmãos agrilhoados de corpo e, tantas vezes, de alma. Se é notório que existem resíduos sociais de difícil absorção ainda hoje, não é menos verdade que a Abolição, por medida legal, representou uma conquista não apenas da raça mas do País, uma etapa decisiva pela dignificação da pessoa humana. Comovente, pelo que se processou na Terra como nos Céus.


[1]

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