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terça-feira, 19 de abril de 2011

'Um Rosa é uma Rosa é uma Rosa'


Uma Rosa 
é uma Rosa, 
é uma Rosa
 por Luciano dos Anjos       Reformador (FEB) Outubro 1970

            Parodiando o genial poeta e compositor brasileiro Vinicius de Moraes que, inspirado em Bach, provou que ‘uma rosa é uma rosa, é uma rosa’, eu diria que uma fonte é uma fonte, é uma fonte... Ocorre-me o arremedo a propósito daqueles que estranhamente se confessam espíritas, kardecistas, mas só aceitam 50% de ‘O Livro dos Espíritos’ (sic).  Li recentemente a respeito. As razões são múltiplas: obra superada, deixa muitas dúvidas, os médiuns são falíveis, muita coisa foi acomodada, muitas questões não satisfazem completamente, há diversas contradições etc., etc. Então, quando se contra-argumenta com o fato de que Kardec foi o portador duma Revelação, ainda se costuma ouvir que as revelações podem ter sua fonte 50% de água pura e 50% de água contaminada (!). Dessa crítica, aliás, não escaparam os próprios Evangelhos, que os pseudo-exegetas querem não sejam autênticos porque estão ‘cheios de afirmativas contraditórias’ e de interpolações da Igreja Católica.
            Não sei como se pode razoar com tamanha indulgência de lógica. Não precisa ser agrônomo, ou mineralogista, ou geofísico, ou seja lá o que for, para entender que... uma fonte é uma fonte. Será sempre completamente pura ou completamente impura. O que não pode ser é metade pura e metade impura; metade de água límpida e metade de água turva. Em questões de fonte, ela é ou não é. Não há meio termo. Por conseguinte, se digo que ‘O Livro dos Espíritos’ é a minha fonte inexaurível de verdade, não estou usando meias palavras. Quero dizer com isso que tudo o que vem daquela obra é puro, limpo, cristalino. Salvo se se tratar de opinião pessoal do Codificador, quando então é muito natural que, falível como qualquer criatura, Kardec tenha cometido equívocos. É mister portanto distinguir bem a Revelação Espírita (‘O Livro dos Espíritos’) do corpo de princípios doutrinários do Espiritismo, que alinha, inclusive, participação pessoal de Kardec (‘O Livro dos Médiuns’, ‘O Evangelho segundo o Espiritismo’, ‘O Céu e o Inferno’, ‘A Gênese’, etc.) Este corpo de princípios é uma decorrência daquela. A fonte da autêntica Revelação é sempre genuína, máxime tratando-se de Revelação que vem acompanhada de fatos, como é o caso da terceira Revelação. Digamos que, não raro, nós é que ainda não estamos à altura de entender certas coisas, dada nossa modesta evolução. Tal é a Revelação Cristã, cujo livro principal, o Evangelho, representa fonte puríssima, embora nem sempre lhe entendamos toda a profundidade dos seus aspectos imanentes. E isto, apesar das interpolações que sabemos ter havido,da parte da Igreja, porque nem estas são suficientes para alterar a mensagem central do Cristo, o seu conteúdo essencialmente subjetivo. Exemplifico: se o Cristo diz que Deus é o Pai, não importa que pintem esse Deus como queiram, para atender às necessidades das diversas épocas e dos diversos graus de inteligência da humanidade. Até mesmo para explorá-Lo. Seja como for, o que nos foi revelado é que Deus existe. E essa revelação é pura, porque oriunda de fonte pura. Se o Cristo diz que devemos amar o inimigo, não importa que falem em Espírito Santo, em batismo, em salvação exclusivamente pela fé, em redenção de seu sangue, em existência de céu, de inferno ou do que lá seja. A revelação é no sentido de que o inimigo deve ser amado. Isto é intrínseco, substancial; o mais é extrínseco, é forma, é apenas periférico. A Revelação, depois de exposta, é percebida (percepção) diretamente pelo Espírito (dos que, obviamente, estão preparados para recebê-la). Os princípios que em cima dela são depois edificados, isto é, a Doutrina propriamente dita, estes são apenas sentidos (sensações) e têm de ser racionalizados por longo, acurado e necessário estudo. Digo a um hotentote: ‘Você é uma criatura de Deus; Deus o criou; Deus é o Criador’. Ele recebe isso pela primeira vez e percebe intuitivamente essa verdade (se, é claro e bom frisar, já estiver evolutivamente à altura dela, pois não me adianta fazer o mesmo com um macaco). Temos, então, até aqui, o caráter da Revelação. Digo-lhe depois: ‘’Porque Deus existe e é o Criador você deve adorá-Lo’. Ele sente, através da audição; e tenho de lhe demonstrar, para que assimile e entenda; tenho de insistir até que se convença. É a Doutrina que firmei em cima da Revelação.  (Sentir, aqui, é empregado em valor estritamente filosófico. Nada tem a ver com sentimento, eflúvio da alma. Por outro lado, percepção também vem sendo usado como sinonímia de intuição, e não no seu absoluto sentido proposto pela Psicologia.
            Repisando: Revelação é substância; Doutrina é forma. A Revelação é sempre inusitada a às vezes está além da lógica. A Doutrina é prevista, é fruto da própria lógica. A Doutrina é a verdade constituída; a Revelação é a Verdade pura.
            É curial que, às vezes, sobre uma Revelação autêntica pode-se levantar uma falsa Doutrina. Mas não se eternizará, não suportará a evolução intelectual, não sobreviverá à exigências do progresso. Desmoralizar-se-á e dela ficará apenas a mensagem ordinária, o miolo, o foco, a verdade pura, enfim, a Revelação.
            Vou lamentar muito se a esta altura deste artigo houver quem argumente com a Primeira Revelação ditada a Moisés, e que sabemos se conter no Velho Testamento, tendo sido porém ressalvada, em muitos pontos, pelo próprio Espiritismo. Ora, não nos esqueçamos que, para o Espiritismo, a primeira Revelação não é o velho Testamento; é apenas o Decálogo inserido no Velho Testamento. A diferença é crucial. Sabe-se e tem-se constantemente ensinado entre os espíritas que Moisés, movido por necessidades, conveniências e circunstâncias da época, elaborou por si, por seu talante e para os hebreus, uma espécie de Código Civil político, de permeio ao qual deu curso a muitas absurdidades. Mas uma coisa é o mosaísmo formalístico do autor da ‘Gênese’; outra coisa muito diferente é a cosmologia da unicidade deística e a ética do Sinai. A Revelação está apenas nesta cosmologia e nesta ética. ‘Ipso facto’, a arguição será sempre inconsistente.
            Assim, dentro da mesma ordem de idéias e tomando doutro exemplo, cabe lembrar que a Revelação dada a Roustaing pode ter tido um cunho expositivo talvez subcessivo para a época de hoje. Que seja. Mas esse cunho não altera a sua substância, a sua essência, conceituada no maravilhoso evolucionismo espiritual que revela e na transcendental temática da personalidade fluídica de Jesus. Esse cunho expositivo, qualquer que seja, não há de ser levado à conta de impureza, pois em nada ele deforma a mensagem.
            Vai daí, voltando agora a ‘O Livro dos Espírtos’, se o apanho e lhe coloco de lado 50% do conteúdo porque ele proveio de fonte suspeita, cometo grande leviandade.  Até irracionalidade. Ou exageros da incultura. Admito que se façam ressalvas à apresentação no estilo de perguntas e respostas (eu, por mim, acho-a excelente e muito apropriada), ou ao critério na divisão em capítulos, ou ainda ao emprego deste ou daquele vocábulo. O próprio Kardec (homem) considerou essas pequenas variantes e, inspirado pelo Alto, modificou algumas coisas ao lançar a 2ª edição da obra. Mas, de tal ordem é a insignificância desse prisma ou que qualquer outra pessoa de saber e da inteligência de Kardec poderia apanhar o trabalho e reapresentá-lo todo outra vez, de maneira completamente diferente. Seria ‘modus in rebus’, o mesmíssimo ‘O Livro dos Espíritos’ desde que a natureza da revelação que está em cada página, em cada linha, não fosse alterada. Digo, por exemplo, de mil maneiras que a reencarnação é lei natural. Perguntando, dialogando, afirmando, analisando, versificando, com sete palavras ou com centenas, isoladamente ou num contexto longo, e até cantando, tudo isso é secundário, O que não posso é negar a reencarnação, contestar a reencarnação, suspeitar da reencarnação.
            Afirmar, portanto, que a fonte (notem bem, não é o meio de condutibilidade da água, mas a fonte em si) afirmar que ela é 50% de água pura e 50% de água pestilenta é não saber o que se afirma. É cincada. Feia e risível.
            Recordo-me de recentíssimas palavras do médium baiano Divaldo Pereira Franco, quando do alto da tribuna do Grupo Espírita Fabiano falou na sua ‘fonte inexaurível de estudo evangélico’ , aprendendo verdades de conteúdo transcendentes ‘pelo processo intuitivo da penetração na fonte do pensamento divino’. (Vide ‘Reformador’ de janeiro de 1970, pág. 10).
            Aqui está a questão igualmente apresentada: a fonte é uma fonte. Assim, esperar que dela venha parte boa e parte má é desejar o impossível. Eis por que deploro os falsos entendedores de Kardec que, ainda imaturos, pretendem a tola veleidade de dissecar ‘O Livro dos Espíritos’, destrinchando-lhe a Revelação ali contida em duas metades: a verdadeira e a duvidosa. Esquecem-se de que mais não fazem senão departir a matéria tão somente em função dos seus caprichos, dos seus pontos de vista pessoais, que não desejam mudar nem admitem ver contraditados.

            Tem carradas de razão o poeta patrício: uma rosa é uma rosa, é uma rosa. O resto é loucura metafísica, na mesma dimensão da dialética do impossível absoluto, que só existe quando se conseguir fazer com que uma coisa ao mesmo tempo seja e não seja. Em Filosofia, é sabido, nem Deus pode fazer isso. Mas – sabemo-lo também – fazer uma rosa ele pode perfeitamente. Tem-na feito sempre. E uma rosa é uma rosa, é uma rosa...



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